Faz 30 anos , na verdade 31, que Clarice Lispector faleceu, vítima de câncer.
Ontem , eu a visitei numa exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, aqui no centro do Rio.
Região marcada pelos contrastes que caracterizam a nossa ex-cidade maravilha.
Desci do metrô , estação Uruguaiana, seguindo uns 3 quarteirões e pouco até alcançar a Rua Primeiro de Março. Primeiro de Março, nossa inauguração.
No caminho cruzei com quase tudo. A esculhambação e a produção séria convivem lado a lado nessa área da cidade onde sua primeira favela foi parida.Ao menos nomeada com tal.
O Glamour e a boçalidade também se misturam. Olho em volta de prédios históricos e viajo um pouco por outras vidas.Lá está o Teatro Municipal e logo em frente há O Majestoso Museu de Belas Artes. Do outro lado situa-se a grandiosa Biblioteca Nacional. Há um guarda que finge comandar o trânsito. Ele está gorducho e parece que tem numa das mãos uma coxinha de galinha. Êpa! Seria ele? Ressurgiu das tumbas a fim de celebrar os 200 anos de sua marcante presença? Não, não era. Dom João VI as comia, quero dizer as coxinhas, com mais talento e falta de educação aristocrática.E todos somos meio ingratos com esse senhor que ajudou a civilizar o que parece não ter civilidade possível.
Mais adiante, na Araújo Porto Alegre com Graça Aranha , os pontos de bicho apostam e o carioca-mau- malandro é campeão em tudo. A vida dele deve estar uma merda mesmo!
Lembro-me que certa vez ao tomar um taxi - aqui no Brasil nós tomamos Taxi . Algo que Dom João e seus patrícios não entenderiam até hoje-, o rapaz, entenda-se o condutor, iniciou prosa comigo, que não estava a fim de prosa alguma , pois encaminhava-me para o sepultamento do pai de uma amiga, mas quando soube que eu mexia com essa tal de análise, descambou a falar sobre a sua broxura e as queixas da , segundo ele, patroa. Hoje, eu o teria mandado comprar um Viagra ou trocar de patroa, mas naquela época quis saber um pouco mais e ele- aí é que foi pior-,contou.E contou também para os amigos de ponto , os tais príncipes medíocres que ,segundo Fernando Pessoa, são campeões em tudo.Mas o porquê disso agora? Estou tentando falar de Clarice. Mas acho que estou falando!Com cuidado e pretensão.
Agora, preciso esclarecer: esse trajeto que, descrevi acima, fora feito na volta e não na visita a Clarice.Senão, já teria me perdido inteiramente, coisa que ela volta e meia fazia, para se reencontrar nos seus belos textos.
E ela era densa e caótica também era. Sozinha e cercada de amigos.Nasceu na gélida Ucrânia e veio morrer aqui nos trópicos.O sotaque jamais perdera. Viveu em diversos países e sempre só: com marido e filhos.
Existem cartas na tal exposição. Uma delas me tocou. Era carta de mãe para filho. Afetuosa, preocupada, interessada, sobretudo saudosa.O filho mais velho estava vivendo no exterior.
Cartas assim me afetam. Mantive uma vasta correspondência epistolar com a minha mãe , durante anos. Eu no Rio, ela em Brasília. E nesse ínterim houve Proust e aquele beijo de Boa Noite, no Caminho De Swann. E lá fui eu desbravar os sete volumes e as dezenas de páginas que narravam o laço cor de rosa da roupa da Sra Verduran. Somente Proust para condensar tudo naquele laço de fita cor de rosa. Ensinamentos que, para além do também não menos saudoso Gilles Deuleze e outros estudiosos da obra do mais alérgico egrégio de que se tem notícia, ao menos na literatura, aprendi com uma das mais brilhantes criaturas que por aqui passaram: Adriana Raposo Ítalo.
Como já adiantei essas linhas, estou na exposição faz é tempo. Aliás, creio que nunca estive fora dela.
Vejo Clarice jovem ,bela e entregue a sua obra que era a sua vida, o seu maior tesão.Escondidinhos, mas disponíveis em gavetas semi-secretas, contemplamos opiniões, críticas e saudades dos amigos de sua breve, mas densa vida.
Ela também conversa conosco através de um entrevista que concedera à televisão.Foram algumas, apesar da timidez proclamada. Está menos bela. Acho que a doença já apresentava suas garras, tal qual uma folha em branco diante da máquina de escrever.
Ao morrer em 1977, deixou uma marca indefectível sobre quem se permitiu conhecê-la, através de sua obra .
- Estou muito ocupada:tomo conta do mundo.- Clarice anunciou certa vez.
Essa passagem , extraída do livro "O descobrimento do Mundo", revela parte da intimidade de quem se presta a escrever.
Nas madrugadas, com o silêncio à espreita, a solidão como parceira, a noite que não vem mais, pois a tecnologia triunfou há tempos,lembro Clarice que pra mim já foi Clarisse também.
Desse modo clariciano, tímido , mas audacioso, controlo a madrugada de mim.
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