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quarta-feira, 8 de julho de 2015

"Meu filho. Vem almoçar".

'Meu filho. Vem almoçar'.
Esse pedido era uma semi-ordenação e fez eco durante muitos anos. À época, tinha como aliada para desviar um pouco a invasão diária- isso mesmo, diária-, uma prezada secretária eletrônica. Mas daquelas antigas; bem robustas, tradicionais. E com aquela fita cassete a gravar as mensagens. E não havia mecanismo de virar a fita automaticamente- 'auto-reverse'- tendo que invadir, portanto, as entranhas da secretária e enfiar a mão, todos os dedos, num assédio impensável e imprudente, mediante as tecnologias vigilantes, de hoje. Portanto, lá nos dias de outrora, o assédio ainda era permitido em certos expedientes.
'Carlos, venha logo'. Mudava de nome, quase uma chamada escolar ( que tanto detestava) , e o convite permanecia. A entonação ganhava contornos de agonia.
A secretária, contudo, era paciente. De fato, profissional. E tinha generosidade também. Permitia que se acoplasse à sua voz burocrática uma gravação outra ou uma trilha sonora ao  gosto da chefia. Uma sonoplastia para saudações.
Foram milhares de recados com a mesma mensagem de texto. Não se cansava. Nem quem emitia nem tanto quanto quem acolhia. E quem acolhia era a secretária ideal. Sem adicionais, processos por assédio ou décimo-terceiro salário. Se estivéssemos na Grécia - do ceticismo de um Pirro aos novos Baianos- adicionaríamos um décimo quinto vencimento. Descontrole com as contas públicas aliado com as safadezas de uma coroporação de faz de conta, lá dos países baixos. Luxemburgo ao que parece. E não faz jardim nem tampouco bate bola no gramado do futebol. Golpe baixo? Sim. A comida esfriara.
Atraso, paciente em atraso, escuta em atraso, só depois; tudo em atraso. O último dos e-mails respondidos levou quase 5 dias. Antes de escutar aquela mensagem metálica novamente. Uma eternidade para esse tipo de solicitação. Não é mais de um cartão  postal que se trata. Esse tinha a sorte ( ou azar?)  de nunca poder chegar, atingir seu alvo. Existiu e ficou invisível, para sempre. Cartão postal é quase da ordem do trágico. Morre antes de completar seu périplo. O anseio ou alívio ( Pronto. Livrei-me disso!) de quem emite e aquela surpresa de quem o receberá. Ou seria: receberia?
"A comida está fria, pois você demorou muito. Onde estavas?"
Era a continuação eterna do diálogo via máquina de gravar as bisbilhotices dos outros. Se essas secretárias falassem, as comissões parlamentares de inquérito, em Atenas ou Brasilis,  teriam sessões, até mesmo, em 30 de Fevereiro. Calendário de Gregório seria revisitado por convenção arbitral. Se popular fosse, a comissão receberia o nome de linchamento. Mas esse dia a mais haveria e tão logo se apercebesse, a festa de Momo - e com aquele gordinho aposentado a presidir- sairia em carro aberto de lantejoulas, badulaques e mais uns tamborins, numa quermesse de pecados e luxúrias. Roma revisitada?
Poderia até se conjecturar já que a família vem de tradição católica apostólica de... araque. Sim, era meio de araque. Carnaval - tradição também da religião mencionada- é para valer. Mas de araques e com outros badulaques fazemos o teatro possível.
Pois, comida fria , mas novidade quente.
Aflita por causa dos novos passos do país - potência global no cinismo contemporâneo da Hollywood do patrão- essa tia comunica para o sobrinho/filho- chegado há pouco e já instalado na sala principal da casa para o manjar habitual que comprara um holofote se a energia nos faltar. Eram tempos de racionamento energético por conta da política equivocada e arrogância desmedida. Antes dessa outra escuridão, ela já tinha retirado enorme quantia do banco supondo que mais um calote sofreria. Afinal, tungaram-lhe a grana poupada pela vida adentro , no início do governo desbotado de um ex-presidente que se supunha multi-color, e não permitiria que mais uma vez lhe roubassem as economias. Vinte e cinco anos se passam daquele calote que custou o mandato daquele mentecapto.
 O que fez então? Guardou todo um dinheirão num casaco para aquecer frio brabo, no fundo daquele armário vigiado por um cadeado fiel. E ali , o dinheiro se esqueceu dele mesmo. Feito o cartão postal que nunca veio. Mas existiu.
Meses depois, quando o prazo para se corrigir bobagens como a que fez- já que fora alertada que a mesma barbaridade não seria repetida-  exibiu afinal as entranhas do seu closet. Saira finalmente do armário. E lá estavam elas. Dobradinhas, virginais e sem lubrificação aparente. Notas e quantas tantas notas de um cruzeiro real- unidade monetária antes do atual Real- que se escondiam do resto do mundo.
Quase sem folego, o sobrinho- nomeado sem concurso para cargo de parentesco afetivo- sentado à beira do estrado da cama mais próxima para não cometer um homicídio doloso e com requintes de crueldade, recuperava o ar que não saía. Explodiria? Pode-se vislumbrar então- permite-se aqui uma anacronia na narrativa, visto que o tempo se faz fictício de fato-  as manchetes do dia seguinte, nos periódicos televisivos: ' Rapaz se atrasa para o almoço, leva bronca da titia e a mata sem chances para qualquer defesa ou mensagem a ser  gravada, pela enésima vez, na secretária de metal e que não recebera o décimo terceiro salário. Há quem diga que ele estava esfomeado'. Há de se entender.....
Rainhas absolutistas na arte da efabulação, ou seja, competência para distorcer intencionalmente certos fatos, a vítima e alguns telejornais, confirmariam - ainda que mortas ou fora do ar, sem sinal- a versão da manchete estampada no mundo. O pobre diabo do sobrinho/filho merecia, para além ou aquém da comida fria e sem gosto, o destino traçado. Então para quê mesmo um holofote?
Seria para enxergar melhor? Marcas bem expostas em tempos de imagens de alta resolução? O pé de galinha, mau exemplo, virou uma perna inteira por esses dias. Com direito a tíbia, perônio, fêmur. Mas permanece enquanto galinha para se manter a tradição. E para que esses olhos arregalados de tão grandes , vovozinha? Vovozinha é a PQP.... Teria dito se essa pergunta tivesse existido, chegado aos seus ouvidos. Cartão postal fonado?
Mas o que ela teria visto nesses últimos 30, 40 anos ( desde o período de GetúlioVargas, caudilho sacralizado e amigo da família), até um Tiririca cheio de gracejos e imunidades- nem tíbia nem ao menos Sir- de um parlamento nacional? Sim , já que se tíbia, perônio ou fíbula podem retratar certa anatomia óssea da caveira oficial, o que dizer das manobras outras a percorrer tanto tempo e do mesmo quase jeito? Que modo estranho, por sinal estúpido, de tratar os chamados compatriotas!  Poderiam até se tornar contemporâneos no instante em que se vive e de um futuro - que demora por demais , vide a constatação desesperada, sangue nas mãos, de um Althusser filósofo-, a ser desenhado e indicado por lente dilegente.
O atraso, entretanto, atrasa qualquer diligência. Como sair dessa? Não somente do armário , mas dessa?
Os mesmos personagens com seus delitos gastos pela caduquice de uma neura pré-medieval e sua ficção mítica do salvacionismo confortável de uma prece ou rito , na espera- longa como uma gota d'água a nos molhar a testa desnuda-nessa vida cuja imanência é denegada, e que retorna para dentro do armário. Armário é transcendente?
E aí vovozinha? Para que serve essa boca tão grande e os seus dentes a ranger bruxismos? Hoje já existe salvação local para isso. Olha a tecnologia ajudando os que não desejam sorrir banguela. Bota-se um troço feito dentadura no céu da boca- só que mais cortês no design e no trato- e o movimento de ranger os dentes das bruxas é recalcado durante o sono. Se vier o rangir, lá do céu da boca, o inferno será menor.
Deve ter sido por isso e para isso, o chamado holofote. Iluminar pontos cegos. E eles se chamam- sussurram no escuro do dia mais claro- enquanto: verdade, certeza, igualdade, justiça, milagre.....A lista é longa. O armário está sempre repleto. Estamos até felizes!! Ou estaríamos?