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terça-feira, 20 de março de 2012

Boy Interrupted.Luto cultuado.

Dana Perry é uma americana corajosa e perdida.Ao menos até o capítulo de anteontem.
Essa típica estadunidense da alta burguesia realizou um documentário para HBO,em 2007 se não estou enganado, intitulado "Boy interrupted".
O documentário trata da saga da sua família em torno de suicídios ocorridos na mesma.
O primeiro deles data de mais de 40 anos.Irmão mais velho,creio que sim, do marido de Dana.Rapaz bonito e proveniente de família rica do Estado de Nova Iorque.
Cometeu suicídio colocando uma mangueira na boca;mangueira atrelada ao cano de escapamento do carro que, guardado na garagem ,supostamente segura,casa da mamãe,não o salvou.Ele conseguiu!Conseguiu?Sim,pois morreu.Conseguiu o quê mesmo?Deixemos em aberto por enquanto o caixão mais que lacrado.
Esse cunhado era menino de vinte e poucos anos.Casado. Todos estavam passando um fim de semana na bela casa de campo da afortunada família.Creio que era um desses 'Thanks Given' estadunidenses.Data religiosa das mais importantes por lá.Feriado nacional com direito a várias fatias de 'apple pie' e outras delícias.
Nada disso parecia interessar-lhe mais.Preparou o suicídio com antecedência.Ofereceu-o à família reunida.Uma tremenda agressão.
A família desorientada,a mãe do morto sucumbiu mentalmente a partir desse petardo,resolveu prestar-lhe homenagem.Construíram seu túmulo nos jardins da mansão sob uma escultura enorme ,produzida e encomendada a um artista espanhol.Virou sarcófago para um morto.
Uma década depois ,nasce Evan Perry,seu sobrinho.Quero dizer: sobrinho do tio morto.Seu pai,o pai do menino que acaba de nascer,era irmão do tio morto.
Evan cresce e vai apresentando projetos semelhantes aos do tio que jamais conhecera.Enquanto pequeno,ele tem olhar distante e comportamento diferenciado,segundo os pais.Ainda segundo os seus pais,ele era uma criança muito amadurecida para a idade.Por quê?Será porque pensava em se destruir ou coisa parecida?Ou seria mais um daqueles assanhamentos neuróticos de mãe que acredita que o seu bonequinho é mais bacana ou menos bacana que todos os outros bonequinhos?
O garoto tinha visíveis comprometimentos emocionais e dificuldades em se adaptar às atividades que lhe concerniam.Faço aqui uma pequena digressão para garantir que também tive certas dificuldades adaptativas,ou melhor , ainda as tenho.
A mãe passou então a documentar,registrar,filmar o crescimento do rebento.Coisa mais insuportável.Por mais que tivesse sérios problemas,aquilo promovia um recorte em cima do garoto que tornava tudo o que era proveniente dele tão especial! Sobretudo as birutices,as chantagens, a sua tristeza em viver.
Escola especial,depois uma regular.Ali,aos 13 anos, escreveu umas peças de teatro,ensaiadas no colégio .Curiosamente,os tais colegas se divertiram muito com a peça escrita pelo tal prodígio da mamãe.
Seu pai tem outro olhar para o filho.Um olhar assustado por causa do trauma vivido,décadas antes.Trata o filho como um doente e não o idolatra por isso.É um homem de olhar triste.
Evan Perry tratava da própria morte.Era um diletante funesto.Curioso....ainda restava vivo.E preocupava-se, como em qualquer boa neurose, com a reação dos que sobreviveriam ao seu enterro.Parece que acreditava que seria possível estar presente nele,depois de morto.AH!AH!AH!AH! Piada de Vaticano!Ninguém lhe ensinou direito essa anedota.Ninguém tampouco lhe perguntou se ele entendia o que era morrer?O que significa nunca mais?Cadê o titio?Sacralizado em seu gesto tão comum: o de querer morrer.Todo mundo quer ....um pouquinho.
Evan Perry frequentava um Psiquiatra que fora corajoso ao prestar depoimento para o filme da mãe.Não estava nem um pouco confortável.Na minha opinião,tinha medo desse cliente.Parece que em certa passagem do documentário,o Dr. confessa isso.
Relembrei uma paciente que também declarava suicídios no horizonte.Eu fazia supervisão com o meu mestre e analista sobre esse reencontro.Isso foi a tempos.Também estava nervoso,inseguro, com toda aquela agressão camuflada de depressão.
Viciada em coisas brancas que se colocam no nariz, era jovem e bela.Seria parente do Dr.Fliess,colega querido do Dr.Freud?Um famoso médico, do seu tempo de Áustria, que pesquisava sobre narizes e psiquê...
Também era rica e mimada,essa minha paciente.Rica financeiramente ,pois a pobreza em outras regiões era comovente.
Alardeava que ia se matar.E eu ali firme:cagando-me e andando-me, tal qual me ensina o mestre.
Ela me perguntava se eu não iria mais atendê-la e eu lhe dizia que enquanto estivesse viva é claro que sim.Caso contrário,não seria mais comigo o papo.E com mais ninguém.Nunca mais.Será que o jovem Evan,esse garoto com o qual perco meu tempo aqui,tinha a dimensão dessa irreversibilidade?
Um dia ,a moça, bela paciente, entrou com uma arma e depositou sob a minha mesa de trabalho.Disse que eu ficasse com ela.Ela dormia ao seu lado,a tal arma.
"AH! Então você arrumou um novo namorado"?- teria lhe perguntado.Ela sorriu e depois chorou.Havia desistido de algo que, creio eu, é um direito para qualquer um,mas a maioria de nós não sabe o que faz.
Suicídios não são sinônimos de fracassos clínicos.No consultório do Dr.Lacan houve alguns,segundo seus biógrafos não autorizados.E Lacan foi um gênio da clínica.
Evan tinha, de acordo com o seu psiquiatra,transtornos bipolares - iguais a quase todos nós- e outras esquisitices.Tomava lítio.Um famoso fármaco para crises psicóticas.
Quem o escutou parece acreditar numa única saída: a medicamentosa.
O garoto já estava ,desde sempre ,entupido por drogas pesadas.
Compreendo o pânico familiar,mas é preciso rever certas coisas.Esses medicamentos,fundamentais em muitos casos ,são também perigosos.Todos trazem efeitos colaterais importantes,sobretudo se ministrados com pouco critério e por longo tempo.Afetam a memória,o metabolismo,o sono,a frequência cardio-respiratória,dentre outros 'side effects'.
O cérebro tem reações e características eletroquímicas.Não resta a menor dúvida.A mente tem tudo isso e muito mais.
Não são endorfinas e dopaminas ou certos outros neurotransmissores a fundamentar comportamentos ,escolhas,desejos,angústias.Eles são meras formações que atuam no nosso organismo.Esquecemos ,por exemplo, que existem mais células nervosas espalhadas pelo nosso tubo digestivo do que no nosso cérebro.
Ancestrais japoneses creditavam grande poder aos intestinos da vida...Diversos estudos revelavam que alguns deles acreditavam que a nossa dita psiquê existia por ali.Seria divertido,não?.'Hoje, botei uma neura vaso abaixo!O problema foi o cheirinho.Então que se chame o Dr.Fliess'!
O que se quer dizer aqui é que não se deve fundamentar a depressão pela pouca presença ou ausência desse ou daquele neurotransmissor,e sim enquanto efeito sintomático das diversas peças de uma complexa engrenagem.
A substância química que não está sendo secretada numa intensidade satisfatória - e isso se assemelha muito a resultados obtidos num exame de sangue para se avaliar ,por exemplo, dados relativos a lipidogramas ou se o número de plaquetas no sangue está na quantidade exigida, etc- é resultante de outros processos de articulação mental.E para cada Evan que há por aí.Cada Evan que somos nós também.Nós tampouco.
É bem provável que a angústia daquele olhar de pai triste fosse fruto de um luto postergado,na verdade por vir, e de um outro que perpassa a história daquela família.
Transformaram uma obra de arte em melancolia para sempre.
Existem perdas que não são superadas jamais.E isso é doença grave.Forma uma lesão,tal como uma fratura e seus pinos a lhe acompanhar pela vida inteira.Um novo esqueleto.Contudo,tão somente esqueleto.
Doutor Freud não era lá um grande frasista,mas um grande pensador e outro gênio da clínica.Teve culhão para analisar sua própria filha,Psicanalista famosa, e a namorada dela,numa época em que escolhas como essas,nada mais normal,poderiam render uma prisão ou quem sabe uma fogueira?
Todavia ,relembro uma frase sua,na verdade o sentido da frase já que não estou seguro se foram essas as palavras proferidas, e que exemplifica um pouco o que se poderia encontrar num quadro de melancolia mais grave: " Numa grande tristeza existe um buraco enorme no mundo.Numa melancolia há um buraco sem mundo".
O problema é que existem os truques canalhas de quem pratica tais esportes.
Para quem era a última carta ,escrita e largada para sempre na tela do computador ,desse jovem norte-americano debutante de 15 anos?
Se a vontade ,ela nos pertence a todos ,de gozar absolutamente para não restar mais nada,gozar da e com a morte que não há,diante do abismo sem mundo?O que o prendeu por mais algum tempo?Para quê a tal mensagem derradeira, sem destino,sem interlocução?Por quê sucumbir às pressões que se despreza e que não são tão minhas ,pois o mundo não há ,nesse buraco fundo?Esse mundo que posso fingir não ser tão meu também.Bela estupidez.
O olhar distante daquele pai perdido é olhar de quem ainda não viu.Talvez não enxergue jamais.De quem não conseguiu se distanciar o suficiente para não ficar tão parecido.
Alguns vínculos são indestrutíveis porque são da ordem de uma neo-etologia. Coisa de bicho.
Talvez uma das razões pelas quais nunca quisera ter filho.Sou bicho assumido e a minha maluquice não será herdada.Acaba por aqui.

terça-feira, 6 de março de 2012

Lispector,Clarice.Trinta e cinco anos.

Existem aquelas pessoas que são especiais pois não morrem.Morre aquele esqueleto que de jovem vira velho,mas a autoria ,cujo esqueleto também porta e vice-versa não.Permanece.
Uma dessas figuras chama-se Clarice Lispector.Escritora,ou melhor,amadora que escrevia ,segundo ela mesma.Dizia isso porque gostava de um compromisso menos compromissado.Tinha razão. A folha,agora tela de alta definição,em branco é pesadelo previsto por qualquer um que se intrometa com as letras.
Clarice era Ucraniana feito a minha amiga que me prestigia aqui no meu pretensioso Blog.Casou-se com diplomata e teve 2 filhos.Pouco se ouve falar deles.
Li tudo ou quase tudo sobre Clarice.Esqueci boa parte para poder retornar quase sempre. Li também sua correspondência com um dos seus melhores interlocutores:o também escritor brasileiro Fernando Sabino.
Já escrevi seu nome com dois ss...Creio que ela me perdoaria sem jamais ter me conhecido.
Morreu de câncer em 1977.Portanto,celebramos 35 anos de saudades e presença constante.Clarice tinha 57 anos e morava no bairro carioca do Leme,cuja densidade demográfica é das maiores do mundo,na rua Gustavo Sampaio.Clarice é uma espécie de heroína da nossa literatura.Viveu seus últimos anos numa rua cujo nome rende homenagens a um herói do exército brasileiro.
Segundo aqueles que investigam cuidadosamente a sua vida e obra,a escritora saía a passear com seu cachorro e permanecia sentada numa pracinha do bairro.A fazer o quê,Clarice? Observar e anotar.Onde? Pouco importava.No canhoto do talonário de cheques,num papel perdido e recuperado em ótima hora,pelo corpo todo.
Trabalho de amadora realizado,retornava para o seu 'bunker'.Ali, transformava algumas palavras em movimento permanente de sentido pleno e vazio.
Outra estudiosa Clariciana nos ensina que os fatos para ela não importavam tanto.Ela ampliava muito tudo aquilo que sentia,via,vivia.
Essa senhora ,Clarice,influenciou-me.
Quando vejo um vídeo,rara entrevista concedida à Televisão Cultura de São Paulo,sinto-me tão distante pois pertinho dali.Ela fala como se estivesse guardando algo na boca.Seriam novas palavras para a descoberta do mundo?Talvez sim ,mas talvez não.
Clarice falava brasileiro com sotaque.Sotaque singular de Lispector.
Macabéa,heroína que nasceu estrela,foi o primeiro que li.Estava lá.Minha família,meus vizinhos,o mundo todo estava lá.
A nossa Ucrânia fica aqui ao lado.Pertinho daquelas pedras que seguram os ânimos de um oceano que chamamos de mar.
Parece que foi ontem.E quem pode garantir que não foi?
Ela talvez tenha dito que sim,pois as coisas mudaram,mas ela permanece.