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domingo, 24 de outubro de 2010

Calças curtas e bicicletas

Brasília foi uma cidade de quintais abertos.E por isso éramos de um voyeurismo escancarado.Os jardins mais belos das casas ,banhadas à distância por um Lago Artificial -como se todos os outros lagos não o fossem para nós,espécie que nomeia tais coisas-; éramos também adolescentes bem arrogantes - o que não é nenhuma novidade - invadindo garagens militares para afrontar os milicos e garantir presença. Cenas de uma época remota....
O comboio começava a se armar a partir de uma ideia sobre coisa alguma.Chegava um depois o outro depois mais outro e assim por diante.As bicicletas e as calças curtas então se posicionavam para o ataque. Na frente,preparado para levar chumbo,entenda-se uma boa bronca, ia o mais velho,mais alto,mais forte e destemido comandante.E era um comandante pra valer,pois alguns generais refestelam-se somente em observar, dos seus gabinetes confortáveis , a sua tropa ser dizimada.
Invadíamos as garagens dos blocos da Marinha Brasileira pela porta de saída - o que representava perigo iminente - e saíamos apressados pela entrada contrária.Era o máximo!
Vingávamos a nós mesmos e aos outros que ,sem alternativa, viam-se obrigados à humilhação de ter o corpo inteiro emporcalhado por ovos podres que os filhos dos marinheiros de alta patente reservavam aos filhos de civis que habitavam a mesma superquadra candanga.Eram meados dos anos 70 e o poder servia só para oprimir quem não fosse da mesma patota.
Pouco a pouco nos tornamos todos camaradas.Alguns até eram conterrâneos.Porém,sempre suspeitávamos de que algo muito sério poderia nos atacar repentinamente.Certa vez, distraído pela comodidade confortável, escapei por pouco do massacre dos ovos podres.Sabia que correra enorme perigo,mas consegui.Ufa! Retornei com a minha integridade física preservada à casa que até hoje resiste. Lá encontrei mãe amorosa que ao saber do acontecido ,exclamou: 'esses meninos são meninos selvagens.Você não deve se envolver com eles'.
Minha mãe sempre me pareceu alguém que não nascera nesse planeta ou ao menos nesse país que resiste em se tornar uma nação de fato.Ela era doce e elegante.E também firme quando necessário.É ,sentenciado pelo Rei Roberto, a saudade que eu gosto- apesar e por causa da dor de sua ausência- de ter.
Contrariando-a entretanto ,segui a vida com os meninos selvagens que me ensinaram truques ótimos para sobrevivência posterior.
Quando o segundo amor me atingiu,eu já era um menino selvagem.Pouco graduado ,pois não fui selvagem o suficiente para que aquela cobra encantadora que, trazia o cheiro da maresia da nossa mesma terra,O Rio de Janeiro,não menos selvagem, se deixasse envenenar ....por mim ,é claro.
Anos depois, já de volta à pátria carioca, reencontrei-a numa noite de lua.E qual é a noite que não tem lua?É isso que dá querer fazer prosa bonita sem saber....Bem, novamente: reencontrei-a -aquela tal menina veneno- numa discoteca.E foi sem a menor emoção,mas com muita alegria que pude constatar a baranga em que ela havia se transformado!!Que baranga!! Fiquei numa euforia tal - agora sim,depois de reparar bem naquele troço em que aquela desgraçada que se enroscou com o meu maior rival de bicicletices,havia se metamorfoseado - que quase larguei o meu carro para alugar uma "bike" e pedalar até a lua mais próxima.Seria minguante?Teria minguado?
Passados 30 anos em cinco minutos e aqueles mesmos prédios com aquelas garagens,agora lacradas por grades inteligentes, e sem a mesma vida,sem as mesmas cores,sem os mesmos comandantes de calças curtas e suas viaturas com correntes ,guidons e selins,num silêncio que mais parece toque de recolher, incompatível com as falações livres do agora, e a constatação que se recusa a partir: por que Domingo ainda se parece tanto com Domingo?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Os novos amigos.

Tenho novos amigo que não sabem o meu nome.São amigos de outros cantos, de outros mesmos mundos.
No início, olhávamos uns para os outros desconfiados.Prontos para o ataque dos machos bárbaros.Pouco a pouco, nos aproximamos, sentimos o cheiro da pele suada, feito pugilistas que pugnam por um nocaute certeiro.Esgueira-se para lá ,mais para baixo, outro lado visitado e vínculos se estabelecem empaticamente.Seria assim mesmo? Claro que não.O vínculo é de pura simpatia.
Empatia tão somente seria pedir muito,já que há rivalidade no ar. Basta um cão novo surgir e exibir-se gaudioso que os outros rosnam a céu aberto. Se vier de muito longe então...Por exemplo: um andarilho de um outro país que fala língua esquisita - e a nossa por certo não é - e o rosnar sobe de tom.
Esse canto de amigos novos tem síndico e tudo.E ele , o nosso síndico , regozija-se intensamente pela função.Talvez seja o único síndico feliz que haja.Além de ser o único que quando ralha com qualquer um outro da matilha é atendido prontamente.Ele é um tanto ranheta ,mas é um ótimo síndico.
Deixei de lado a minha identidade e parti para uma conversa onde o que vale é o que acontece ali,de três até cinco vezes por semana,se calor estiver ou a chuva como companhia a nos refrescar e também a afugentar.
E cada um tem o seu trabalho,tem a sua vidinha,seus dramas,seus vícios,suas vagabundagens,suas ambições e aquele oceano para compartilhar escopicamente ,feito sonho de menino que queria um dia ser forte e se exibir em outros cantos dos mesmos mundos.