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quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Turbulência

O vôo seguia trajetória prevista. Estava atrasado, o que é normal.Seguíamos o rumo , ou melhor, o destino traçado. A cada instrução uma novidade, uma expectativa e uma certeza: não há certeza alguma.
O senhor ao meu lado, grisalho pela vida longa, lia atento. Folheava cada página como se fosse a última. Evoquei Lamartine :
' ...e o dedo passa a página em que se morre '. Passagem antológica do seu famoso poema , " O livro da existência".
Na verdade , não sei ao certo o que lia , o tal homem. Lamartine comparece , pois eu o admiro. O tal 'Livro da existência ' é um dos poucos poemas que sei declamá-lo inteiramente. Quando o escutei pela primeira vez, estudava outros poetas franceses. Valèry , Baudelaire, o irmãozinho de Camile, Paul Claudel, autor da célebre frase : ' Brasileiros são um povo com muitos reflexos mas sem nenhuma reflexão'. Estava certo.
Ele , contudo, prosseguia com a sua leitura....
Arrisquei "una pregunta", pois o senhor era Argentino. Respondeu-me desinteressado.Era quase monossilábico o seu discurso. Resolvi não importuná-lo, afinal estávamos numa avião de bandeira estrangeira. Era um avião antigo, mas parecia um teco-teco, transparecendo a falência que acossa a aeronáutica, não só no nosso combalido continente, mas no mundo inteiro.Onze de Setembro de 2001, a data que marca o início do século XXI, deixou fortes sequelas.
A aeronave inicia então um vôo tranquilo que subitamente se transforma em horror flutuante.
A impotência invade a alma e a tripulação se esconde em visível covardia e negligência.Nenhuma informação é dada. Arrisco uma espiadela para o lado de fora, mas não há fora.Tento saber sobre o que se passa , mas não há resposta alguma. Busco sumir dali, mas não há sumiço póssível. A porta está hermeticamente fechada.Respiro.AH, que ótimo! Ainda respiro! Ótimo? Por que ótimo? Ainda me encontro preso aqui. O que fazer? Poderia ir até a cabine do piloto e indagar algo.'E aí amigo piloto. Vamos cair ?' O amigo piloto não responde. Dormia tranquilo. O outro piloto, o automático, e que não possui direitos trabalhistas, comandava aquela mixórdia.Opto por não me aventurar mais.
Fico quieto, atrelado ao cinto. O livro à frente não prende mais a minha atenção. Não acaricio folha alguma, mas ainda me preocupa a minha existência. Melhor dizendo:a minha sobrevivência. Ela está em jogo e nas mãos de um piloto automático taciturno e de um comandante porra louca! Quero beber . Não há bebida possível. Quero gritar, mas a voz me falta. Deve ser o ar rarefeito.O ar rarefeito por sinal é um ótimo aliado dos bons tintos e brancos. Além de harmonizá-los com outras formações , potencializa os seus efeitos enebriantes.
Infelizmente, não haverá a dose final.
As moças próximas iniciam oração. Têm intimidade com alguns santos, cuja foto presentifica algum tipo de crença. - ' O rapaz aí da foto conhece algo sobre aviação e suas turbulências?'- indaguei.
A expressão de desdém e ódio que obtive, deixa-me ainda em dúvida sobre as competências indagadas.
De repente, o sacode-sacode daquela aeronave desaparece.
O senhor, aquele lá do início, desperta após um sono , aparentemente tranquilo.Sorri para mim. Indignado, pergunto-lhe: "Não teves medo"?
'Do quê?'- teria respondido.
'Desse horror de vôo. Achei que essa merda fosse cair! E ninguém a nos informar sobre o que se passava !"- vociferava eu.
'Bobagem.Na minha idade, 'hijo', já não me preocupo com esses incidentes. Estou no lucro há muito. Até sonhei que havia um probleminha e nos encontrávamos em apuros, mas aqui estou de novo. Avião só não é pior do que a nossa arrogância em supor que podemos controlar tudo, até mesmo o movimento das nuvens.Quando entro aqui, deixo-me levar. As turbinas são a minha última esperança de que as minhas pernas ainda têm considerável potência.Elas levantam vôo e alcançam distâncias inimagináveis rapidamente. É quase um milagre! Se não funcionar, há uma vantagem: não estaremos mais presentes. O que é um duro golpe para nossa arrogância,nossas ilusões, não é mesmo?'
A aeronave pousou. Perfeito.

Um comentário:

Unknown disse...

querido, adorei as carluchices!!!...que seja o inicio de uma rentável caminhada!......por aqui registro a indicação de Palermo...com saudades da bela Buenos Aires....bjs