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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Os degraus e suas tagarelices.

Sobe-se um degrau e depois um segundo degrau. E assim se vai, um de cada vez, até o coração dizer basta! Abuso de poder diante da não arbitrariedade do compasso das artérias. Mas ninguém sabe ao certo quem está no comando. Pesquisa recente, publicada em prestigiada revista científica, afirma, através de estudos rigorosos, que para milhões de células que nos compõem existem trilhões de bactérias à espreita. Temos sistemas sobrepostos. Parecido com os degraus de escadas.
E os degraus vão se  dobrando, feito cobra enroscada, numa curva perigosa. E nenhuma placa de advertência há no horizonte da próxima curva a alertar para riscos. Não havia tampouco corrimão para salvaguardar alguma carcaça desequilibrada, bêbada. Chamar-se-ia  de matadouro não oficial ( estamos tomados de mesóclises, provocação a Hilda Hilst e sua aversão por essa praticagem ou seria uma homenagem ao vernáculo vicioso de uma histérica Jânio Quadros?). Armadilha, sobretudo, para formações mais antigas e seus desequilíbrios mundanos.
Nenhum incidente grave, ao menos nenhum registro. Talvez um 'Ai, Ui' aqui acolá. Nada, portanto, além das onomatopeias curtas apesar das dores supostas. E nem ao menos sabemos se essas tais dores supostas não são intrigas de comadres a fofocar sobre as vidas outras nessas resistentes perigosas curvas de cada andar, em cada porta que se avizinha.
Cada lance de escada superado apresenta um outro adiante. Uma curva a mais, um corpo ofegante. 'Ótimo exercício para o segundo coração'!- acena o cardiologista imaginário de dentro do elevador refrigerado.  E o que seria esse segundo coração? Aqui nas terras de Cabral recebe o nome de panturrilha ou batata da perna. Torturas como essa são boas para o coração primeiro, panturrilham ( verbo recém-implantado) os especialistas.
Na penúltima curva à direita, encontram-se algumas intimidades dos vizinhos. São garrafas vazias, algumas revistas velhas, livros carcomidos por insetos incultos. Numa das garrafas há uma digital feita de vinho tinto. A impressão é recente e as pistas podem conduzir ao bebedor. Não há crime perfeito. Aonde levaria essa digital cor de sangue e a curiosidade que interrompe a malhação da panturrilha?
Ali, numa das portas fechadas para intromissões bisbilhoteiras, fofocam que vive uma moça. Mudou-se para o edifício há poucos meses. Jamais foi vista pelos outros moradores. Mente-se. Cortejou-se com uma parte de sua alma reluzindo: era o seu carro o qual mal sabe conduzir. Quem o faz, isto é, quem o estaciona, faz malabares, na garagem, é um dos funcionários do prédio e suas escadas. Ele está sorridente desde então. Ganhou uns trocados ou estaria embriagado por garrafas de uns bons tintos e suas impressões quase anônimas?
De tantas comadres faladeiras a existir, ao menos são educadas pois tagarelam sobre todos e tudo pelas costas, fica-se parecido. Passamos a tomar a vida dos outros como se a nossa fosse. É o que fazem alguns imitadores, plagiadores, conspiradores. Estilística inexistente.
Na soleira de sua porta, da moça recém chegada, há um pequeno tapete que diz em língua de gringo " home sweet home." Em língua nossa parece algo como 'lar adocicado lar'. Uma espécie de anteparo para diabetes.  Essa vizinha adocicada ainda não mostrou outra face senão a extensão das suas pernas metálicas que exibe-se ao sol da garagem descoberta. E o homem da portaria, gratificado, por ela passeia. Para frente, para trás. O que aumenta ainda mais as falações das comadres faladeiras. Insinuam que há uma transa que não entendem. São mais antigas, tempos de camisolas compridas e pecados curtinhos. Seriam vitorianas? Ora, no mínimo uma injustiça com a Rainha. Ela tinha seus amantes e deixou a impressão- talvez num Bourbon americanizado prevendo futuros tão distantes- de recato real.
No penúltimo degrau daquela curva, agora, antepenúltima, uma das comadres faladeiras se desfaz do seu lixo, das suas impressões. Já há pelo menos uma testemunha se um crime acontecer. Ela encara o proprietário da panturrilha esgotada por tanto esforço e exige que lhe conte algo sobre aquele fantasma de vizinha e cujo lixo despertara curiosidades. Em homenagem a Gabriel Garcia Márquez , já que uma revista moribunda , esquecida numa das curvas suplantadas da escada abaixo, trazia a fotografia desse grande contador de causos, algo lhe foi dito:
' Pode não ser ela, e sim ele. Apesar da baliza mal feita. Pode ser ácida, mesmo com aquele açucareiro a sua porta. Pode beber whisky ao invés dos tintos. Oferecendo a nobre bebida aos convivas ( parece que cozinha divinamente , visto o aroma que exala de suas privacidades domiciliares) ou pretensos amantes. Pode não ser ninguém. Talvez uma assombração que vaga com pernas mecânicas possantes, ar refrigerado, aparelho de som, GPS e que se bronzeia, tórrido destino, na garagem aberta. Pode ser todo mundo com todos os sexos que somam tão somente um. Pode ser um delírio a mais. Haveria tal moça? Seria bela como suas curvas feitas de degraus? Talvez serpentes que se enrosquem na imaginação dos homens? Sobe-se uma escada que parece não ter fim ou ela nos atira para cima- desafiando gravidades-, e generosa, acompanha-nos andar abaixo?
Paralisada, a comadre tagarela fingiu acreditar no que lhe confundiu um bocadinho a mais. Abre passagem mediante a bruxaria de uma vassoura que lhe porta. E o resto de fôlego que se esvai diz Há-Deus, diante dos degraus, curvas, elações, algumas peripécias. Ufa! Andar errado.

3 comentários:

Manoel Artur disse...

Tivemos, certa temporada, uma masseuse como vizinha. Gozava calada, pelo jeito, se acreditarmos em Tim Maia. Foi expulsa pela Liga das Senhoras Respeitáveis Amantes do Porteiro da Tarde, um segredo de polichinelo, mas ainda assim um segredo que permitiu a atitude expulsória. Subimos as escadas com o coração na mão, saberia a nova moradora gemer em silêncio? A descobrir...

carluchodantas disse...

A descobrir caríssimo.

carluchodantas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.