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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O alimento' tablet'.

- O serviço até que foi bom. Veio rápido.
- Não seja tão implicante. A comida também estava uma delícia. 
- Mas eu não comi nada! Você não percebeu?
Seria quase impossível notar. A não ser que tivesses uma visão periférica estupenda. Daquelas que os bichinhos répteis, aqueles lagartos e seus parentes mais invocados, os jacarés, possuem. São mestres na arte de revirar olhinhos, esses bichanos. Em breve, algumas moças poderão adotá-los e até estabelecer uma união estável. Proteção sem igual. 
Desde o momento em que entraram no restaurante, aquela família demonstrava que tinham pressa. Mamãe, papai e o casal de filhos. A menina- deixe a imaginação nos guiar- deveria ter uns 17 anos. O por quê dos 17? Um número bom. Talvez porque esteja sendo celebrado os 30 anos do retorno à pátria de São Sebastião, após um exílio de oito anos no planalto central do Brasil.
O menino, seu irmão- com quem ela passou parte da noite a implicar e desdenhar da sua simples existência- devia ser mais jovem. Talvez uns dois anos a separar os irmãos. E nessa fase da vida, podem fazer muita diferença. Muitos tabus- um tipo de neura reforçado pela cultura- passam a ser enfrentados, desafiados, pelos que acrescentam dias a mais no seu currículo. Meninas ou meninos que custam mais a perder a famigerada virgindade, por exemplo, podem sofrer represálias, humilhações. É o tal do bullying. Uma expressão americanizada do norte e que em bom Português significa sacanagem contra outrem. Sabemos, mas pode-se fingir  que não, que as crianças podem ser muito cruéis.
Conhecimentos que podem advir da escola ou na academia de ginástica ( arte marcial é um conhecimento e dos melhores)  valem - ao menos valiam- créditos na poupança da arrogância juvenil. E isso se dá em qualquer recanto, independente da condição social.  
Quando participei, durante alguns anos, de um grupo de pesquisa de campo, numa das comunidades mais pobres e violentas do Rio de Janeiro, início dos anos 90, conhecemos mães adolescentes com seus relatos que indicavam a gravidez como possibilidade- a única para muitas- de um futuro melhor. O melhor aqui é romanceado. Um mero futuro. E já era muito. A maternagem tornava-se cada vez mais, sobretudo nessas comunidades ditas carentes, um sintoma de posicionamento social relevante no mundo- aquisição de um poder-, sem contar o sonho ilusório de uma completude a ser alcançada mediante ato de procriação. 
Algumas das jovens chegavam a procurar os postos de saúde dessas regiões- com toda a precariedade que até hoje há- para indagar dos médicos o quê se fazer para engravidar, por exemplo. ' Ganhar neném, seu 'doutô'. O médico também relatava os seus embaraços e as suas dificuldades em lidar com tudo isso. Afinal, os códigos são muito distintos.
- Você quer saber sobre métodos para não engravidar, anticoncepcionais,  não é isso menina?- aflito, o doutor lhe indagava.
- Não 'doutô'...É para ficar prenha mesmo, É isso o quê mais quero.- ria alto, sem o menor constrangimento, a futura mamãe. Independente do que pensasse o código moral do tal 'doutô'. 
Na sua visão tacanha, tosca e ingênua , mas não burra, a adolescente, na faixa etária dos 12 aos 15 anos, ao engravidar de alguém com bastante poder na comunidade _ um traficante , também jovem, mas não tanto-,  adquiria prestígio imediato. Tornar-se-ia uma espécie de primeira dama do pedaço. O que não computavam em seu delírio juvenil é que o mais provável é que viessem a se tornar uma das muitas outras viúvas do mesmo pedaço. Afinal, os caras, os noivos escolhidos, não sobrevivem tanto tempo. Antigamente, e isso não é lenda, viviam muito mais. Dito por um sábio que malandro bom joga limpo. Colhe frutos desses dias a mais vividos com astúcia. Merecem respeito. Não se conformam com o não futuro que o Estado degradado brasileiro lhes reservou para sempre. Salvo raríssimos heróis ou heroínas, será bem previsível o seu devir. 
Nessa mesma época, um escritor-jornalista, com bastante prestígio na cidade maravilha, escreveu um livro que fez sucesso. Foi quase um 'Best-Book'. Contudo, houve um desencontro radical entre o que ele dizia e o que nós íamos encontrando. Os fatos colhidos, das nossas andanças nessas comunidades difíceis de se transitar , transar, da cidade. E quando houve ousadia ao indagar se o tal livro de sucesso não teria dado uma empurradinha para o túmulo no rapaz- traficante de uma outra região não menos perigosa e que lhe dera a entrevista arriscada, ou seja, abriu a matraca e falou dos outros companheiros de delito, fossem eles rivais ou não, e também sobre a polícia e sua falta de inteligência logística e outros quetais que circundam o universo policial-, a coisa ficou mais séria. O vetusto senhor da imprensa passou a nos boicotar. Recusava artigo ou entrevista que tivesse algum de nós envolvidos. Viramos, aos seu olhar e credo, nenhum de nós. Igual a nome de banda musical famosa.
Depois do massacre ocorrido em Vigário Geral ou daquele outro crime brutal ocorrido na porta da igreja da Candelária, ambas aniversariando 20 anos, qualquer piscadela fora de ritmo poderá custar caríssimo ao desafinado piscador e seus adjuntos. Ele também tinha um coração, bem sabemos, João Gilberto. E ele parou de bater, apesar do pouco tempo de avenida. Já que o compasso acertado dita a roda do mestre bamba. Seu destino.
Aquilo tudo que presenciamos era muito precário. Aquela vida empobrecida nas mais diversas formas de existência. Ao mesmo tempo, quanto vitalismo! Que tesão pela permanência! Se houvesse reflexão mínima- algo raro independente da condição social- a violência seria ainda maior. Por essas e outras é que as instituições religiosas multiplicam-se. Vou dizer algo que pode parecer incoerente para quem trava questionamentos e críticas contundentes sobre esses credos todos. Diante do abismo social e intransponível ao qual chegamos, juntamente com a explosão populacional, -e isso também justifica a permanência política de posturas advindas da Revolução Francesa, ou seja, esquerdas e direitas-, essas instituições assistencialistas opressivas e os seus códigos de conduta condenatórios, moralistas, e ainda por cima vendedoras de ilusões, são uma espécie de mal necessário. Ao menos pelos próximos 50, 100 anos. Não há inteligência analítica para se operar com material tão complexo. Ressalta-se: sem chiliques, ataques, barbárie, racismos...Talvez o maior golpe de Estado- golpe oficial- que houve nos últimos tempos foi a renúncia do antigo papa- o alemão- em favor desse atual. Decisão inteligentíssima. O eleito entendeu tudo da contemporaneidade e sua vocação- não é de agora , mas de um quase sempre- em puxar para trás quando certos poderes insistem na sua vocação de  progressão. O que é caminho espontâneo, dito natural. Mesmo que nessa progressão compareça de tudo.  Feito manifestação de rua. Separar, fractalizar, desconfigurar, conhecer, considerar, distanciar-se, integra o pacote da análise dos fatos.  A procriação de artefatos, via tecnologia, desconfigurou, degradou, muitas crenças. Portanto, o Estado que não consegue se antecipar às demandas, tornar-se contemporâneo de sua época, estará sempre em atraso. Diferentemente do que se observa nas nações mais progressistas, de fato, tais como os estados escandinavos. O Brasil e outros tantos países vizinhos, e outros mais distantes somente do ponto de vista geográfico, estão atrasados. E ele se arrasta, o tal atraso valorado.
No Rio de Janeiro, seja da favela com meninas de barriga precocemente contentes ou da favelização mental da roupinha mais engomada de qualquer dito bairro nobre, observa-se a fóbica atitude - tentando camuflar possíveis perversões- de mandatários diante de crises tão comuns. Corrupção, rivalidade, erros, acertos, negligência, cinismo...Esse pacote compõe qualquer governo. Esteja à esquerda ou à direita. Se lúcido estiver, alternará posições com maior frequência diante das demandas. E isso não constitui inconsistência de ação ou covardia. São as tais posições ad hoc que determinadas instituições e estados já entenderam e procuram colocar em prática. Toma-se, no senso comum do não senso, a disponibilidade para alternâncias como algo enlouquecido, incoerente, ineficaz, menor, paradoxal. Quando na verdade é a possibilidade de ficarmos menos estupidificados, engessados, pela grande máquina de produção de gessos que é a cultura. Em Estado de Rio de Janeiro ( minha alma canta, Tom)  refugiou-se até da possibilidade de um papo. O Príncipe em seu castelo envidraçado do bairro mais caro. Um gabinete de crise? Para quê? Indagaria o príncipe ao ser lembrado que soberanos, estadistas ( formação tão rara quanto um político de verdade hoje em dia) mostram-se, dizem o seu tamanho,  em estados de exceção. Reconhecimento de falha então...Algo quase impossível. Diria em tom de ironia refinada o patrício de um Cabral distante, Fernando Pessoa, que só existem príncipes e princesas nessa vida. Como reverter o que que quer que haja com um sintomão desses?  Aproveita-se o momento para se perguntar também sobre temas do cotidiano de um fim de ano tão desgastado pelo fato de se contar finais de ano por demais: pode-se mentalmente reverter um calendário? Driblar um pouco datas e estações? As estações já pregam peças na carne frágil. Não é raro haver frio de verão e calor de inverno. Sua santidade papal, exemplo contemporâneo, dribla feito seu patrício Diego, o Maradona. Anda perdoando todo mundo. Isso é libertário para culpados. Ainda que disfarçado de sentimentos tão somente. E nós aprendemos que sentimento de culpa, culpa também é.
Reverter calendário é bater de frente com situações enlouquecidas. Optamos por cair na sacralização de meros acordos convencionados para organizar um pouco a zorra total do dia a dia. Esquecemos, porque assim queremos, que são somente combinações acertadas ( ainda que na pancada). São invencionices possíveis à espécie . Despreza-se o banho de sol por uma solitária feita de breu. Com o progresso dos achados nas ciências, fica um pouco mais difícil crer na contagem desse fluxo andarilho que só evidencia uma insistência na permanência dos fatos. E esses fatos resistem às transformações, às reversões possíveis. Até mesmo de um calendário de papel. O tempo.
Aliás, a mesma insistência de prosseguir teclando letrinhas, aqui e agora, mais a tela vazia, tomada de signos. O humano contemporâneo avistado por Magno Machado Dias de sua caravela plerômica: O HomoZapiens.
Papai  e mamãe...mais os filhotes, divertiam-se à mesa. Calma. Não se trata de um teatro forjado à fórceps para polemizar com teorias antropológicas que evocam coisas incestuosas estabelecendo passagens do bicho natureza para bicho cultural. Funcionando de homozapiens, todos eles vão zapeando com seus aparelhos que falam e escrevem uma nova gramática. São seres 'tablets'. Tratando pois de fatos que parecem mais ou menos enlouquecidos, o que alimenta os aparelhos? Estamos num restaurante. Independente da fome de cada um, ( a gente tem fome do quê?- a pergunta precisa de uns Titãs)  há de se comer, hidratar-se, dormir para sonhar. A carne é frágil, já se provou, e a boca nervosa da pulsão-tesão não se satisfaz inteiramente nunca. Grávida ou não. Interagir? Sim. Desse outro jeito. Cada um na sua e com seu maquinário eletrônico portátil ao alcance dos dedos- extensão desse corpo que de fábrica é pleno de incompetências, salvo o cérebro homozapiens, órgão fantástico do rei da selva- apesar da solicitada e
necessária companhia.
Todos teclavam ao mesmo tempo. Agitados, dedos ágeis. As expressões faciais oscilavam pouco. Vez ou outra um sorriso aqui, uma contração de músculo acolá, um franzir para exibição de rugas. Tempos decorridos que se revelam. A carne data desde a infância. E ela é pojada de neura e pode ser cruel. E é frágil. Pode exibir pelota, bolota, pereba também pode. O menino de família parece se divertir um pouco mais. Depois de tanto desprezo por parte da irmã, ele desconfia que qualquer coisa pode ser séria, mas não tanto,se houver um pouco de saúde. Ele misturou os sabores e o garfo e a faca saíram de dentro do 'tablet'. Magia? Também pode. E quem disse que não há materialidade no celebrado mundo virtual?
A menina parecia acreditar um pouco mais. Dizia que era indolência o tal jeito do irmão e acrescentava- com o seu olhar de menina- que aquilo era da ordem de um infantilismo sem volta. Exílio trágico. 
Muitas meninas, por possuírem uma complexidade hormonal deveras especial, acreditam sempre que a simplicidade dos meninos e seus penduricalhos- que depois de uma balançadinha ficam novos-, não ultrapassa a adolescência jamais. Vejamos que todas as opiniões parecem ser definitivas, logo tão cruéis, opressivas. Não há reversão aos seus olhos juvenis. Tudo deve ser trágico e só quem se arrebenta ou até morre são os outros. E ela estava aflita.
Quando o telefone tocava, eis que derruba quase tudo o que estava à frente, incluindo nesse combo, o prato vazio. Alimentava-se de tecladas e da  ansiedade pelo chamado daquele outro menino, da mesma geração sua, e gatinho da escola. Aqui, comete-se um erro no imaginário da história. O menino, aguardado feito tesouro, era bem mais experiente. Tinha dezenove anos.Já saia só com o seu 'tablet' turbinado-androide sem necessitar de autorização prévia.Esses predicados nesse exato momento, visto que daqui a uma hora poderão estar obsoletos, constituem prestígio em qualquer comunidade e suas carências particulares.
O pai e a mãe por sua vez aderiram ao banquete. Degustaram- palavra mais pretensiosa para comilança e bebedeira- pratos e torpedos bombardeados para os seus brinquedos que comportam as diversas idades. E ele, o patriarca provedor, negociava mais um golpe na praça. 'Pago pelo que não posso'- divertia-se enquanto bebia um vinho caro. E crê que não haverá consequências. Seriam os tais hormônios machos a lhe eternizar infantilismos?
A mãe- espécie de Jasmine, Blue, de Woody Allen- acordava com tudo desde que não perdesse a posição social tão sonhada. Fingia-se de maluquete enquanto mera estratégia de sedução. Poderia então cometer maluquices 'bem intencionadas' pois confiante sempre se postava ao contar com a indulgência e o perdão dos outros para com as suas birutices.Uma espécie de 'bullying' dissimulado. Jantar de gente grande pode ser assim.
Num desligar de aparelhos, ciberneticamente mais rápido do que um piscar de olhinhos com potencial periférico extremo, quase espacial, a família se retirou. Com a mesma pressa com a qual pensa ter chegado em lugar qualquer. Do lado de fora da casa-restaurante, havia uma moça com uniforme de trabalho. Ela está sentada na soleira da porta da casa vizinha que também se metamorfoseou de restaurante. Cabisbaixa, a mulata, um 'upgrade' de beleza, teclava sem parar o seu 'tablet' cor de rosa. Não escutava mais nada senão o tec-tec  daquele ato. Um mundo todinho passava entre os seus dedos e olhares. O que passava diante dela, entretanto, não se fazia notar. Sabia que tinha uma gente perambulando nas cercanias e que fazia ruído de tec-tec tal e qual. De repente, levantou os olhos e trocou um específico tec-tec com a  menina que estava no restaurante-casa. ' O serviço realmente estava ótimo. Rápida conexão, tempero perfeito'. A moça da soleira da porta sorriu. Entendia aquele código. Era o mesmo na sua comunidade, hoje menos distante.. Aliás, a sua filha bem pequena, nascida de um pai já morto, adentrava o mesmo mundo. 
 -Acho que podemos nos alimentar de nada e sem adoecer. Esse nada faz parecer coisa à beça. Alguns de nós se recusam a entender- teria digitado a voz.

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