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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Gerações que se articulam- Leblon 60 anos.

Numa festa entre amigos de longa data, o jovem pergunta ao mais velho: " Quer dizer que o senhor ( o que deve ter provocado certa reação de espanto por parte do inconformado idoso) vive há 60 anos no Leblon?" A resposta foi afirmativa e seguirá com todos os detalhes que somente o autor da resposta pode decidir se ocorreram de fato ou não.
Discorre sobre as delícias experimentadas no bairro, hoje badalado por programas televisivos, contando inúmeras vantagens a seu favor. Característica insuperável. Nem mesmo o tempo, o passar de histórias e movimento dos fatos, faz diminuir a vaidade soberana.
Quando parecia encerrar a sua descrição, uma narrativa permeada por intervalos estratégicos a seduzir ouvintes presentes desse período de outrora, uma pausa se faz na fala entusiasmada. Olha ao redor, checando se havia aumento na audiência, e indaga novamente:
- Mas você me fez uma outra pergunta?
-Não, senhor. Quero dizer...Indaguei a você se naquele tempo, onde a cozinheira da casa, que ficava na esquina da Avenida que leva o nome de um ex-presidente do Brasil, chamava a ti e aos seus irmãos  para o almoço, balançando um pequeno sino que carregava nas mãos, não era melhor do que hojendía. Viver aqui, quero dizer. E vocês ainda por cima escutavam o badalar da sineta! Apesar de todo o alvoroço da pelada da hora do almoço! Não havia xingamentos entre irmãos? Senhor juiz, o senhor errou. Era assim o trato.
- Xingávamos menos. O futebol era mais cadenciado. Até mesmo na areia quente da praia. Tratava-se melhor a bola. E não havia juiz. Quem apitava o jogo éramos nós. Ali, segundo um futuro parente meu e chegado a ateísmos, isso exemplificaria o vitalismo de um senhor alemão conhecido como Nietzsche que proclamava a morte de Deus! A gente resolvia. Ausência de Estado? Anarquia? Sem polícia? Noutro dia,  uma policial , estudante universitária, recebeu um balaço pelas costas. Trinta e poucos anos. Segundo a mãe, sexagenária, nenhuma ONG ou parlamentar ou estudante cheio de energias enviou alguma mensagem de consideração e tampouco evocaram os diretos humanos. Não são humanos, a maioria ou alguns, da polícia? Não são humanos todos os que compõem o Estado? São humanos os direitos humanos? Todos nascem iguais... Não creio nisso. Mas se um dia fôssemos mais legais, resolveríamos entre nós. Parece sonho, não é? Por isso creio em Deus. Ele arbitrariamente decidirá no fim.
- Mas não há transa?
- Sim, ele arbitra. Pode rever estatutos postos, consagrados.
- Quem não crê nisso agora sou eu. Acho meio fascista esse arbítrio todo advindo de seres  fantasmagóricos Muito poder para uma criatura só. Parece até a presidência da república brasileira. Temos a impressão que vivemos numa Monarquia Absolutista com um parlamento de mentirinhas. E o resto da turma- coitadinha- não tem livre arbítrio algum. Surgiu, depois desse pensador alemão que citastes, um outro que afirma que a gente há onde não havemos. É uma tal de inconsciência. Veio da Áustria o pensante.
- Respeito a sua posição, mas não concordo. Tentei até catequizar esse futuro parente, mas não deu. Aliás, a estratégia foi equivocada. Mas certo dia, voltando aos assuntos mundanos, uma falta controversa na pelada da praia, gerou muitos protestos, quase manifestações. Já que não surgiu nenhuma solução, o jogo foi adiado. Retornamos dois depois, após um papo no bar que, obviamente, não existe mais.
- Por que o obviamente nesse quesito existência?
- Não respeitamos tradições nossas. Por isso que não andamos muito para frente. Fica-se feito tartaruga e sua casca dura. Apenas sobrevive-se mais ou menos ao calorão. E hoje. vive-se mais a estética, a ética, a política da casca. A fotogenia impõe modos de existência nas cidades tropicais. E as televisões daqui, não somente as do Leblon,  reforçam isso. Só se vê formosuras tagarelando nas telas.
- Apesar e por tudo, era bem melhor nos tempos das sinetas a chamar para o rango?
Dessa vez a resposta veio de bate pronto, tal qual um volante bem posicionado e de frente para o alvo a espera da consagração. Estava quase pronta. Pobre do goleiro. E chama-se volante o que já fora outra coisa. Meia-armador, ponta de lança, ponteiro direito, esquerdo. Eram alguns dos apelidos que os peladeiros ocupavam.
- Hoje está muito bom também. Tenho lá as minhas saudades, as minhas recordações. Também tenho as minhas velhices, artrites. Procuro não estacionar a minha vida nesse espaço que tende a mofar ( feito certos governos). Sou alérgico a esse mofo. Produzi na minha profissão uma arte difícil, arriscada, exaustiva, por mais de meio século. Atravessei uma fase que se iniciou com equipamento quase artesanal, chegando à tecnologia de ponta que está disponível nesses tempos de agora. Havia até  traços de humanidade nos hospitais públicos, sabias?
Conversa suspensa. A bebida e a comida  e os amigos. Uma  noite de celebrações e esclarecimentos. Gerações que se articulam.

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