Boa noite. Meu nome é Ronald de Chevalier. Daqui a pouco, Roniquito.
Era dessa forma que um dos economistas e boêmios mais brilhantes, ruidosos e temidos da Zona Sul carioca, anos 60/70, apresentava-se.
Ronald era um economista com muitas erudições.Conhecia muito bem a obra de Shakespeare, diversas óperas, brasileiros ilustres - tão importantes quanto o escritor e mentor de Hamlet- , e gostava muito das mulheres. Homem, portanto, de muitas virtudes. Todos nós - exceto os misóginos invejosos- gostamos muito das mulheres. Independente do que se queira fazer juntinho ou não.
A mudança do personagem - Ronald para Roniquito- deve-se ao efeito etílico e suas doses gloriosas - e nem eram tantas assim segundo testemunhas menos enebriadas- daquele whisky parceiro e depois cruel. Ronald então tornar-se-ia Roniquito em pouco tempo. Uma mistura explosiva, uma metamorfose pós bebedeira de Ronald 'plus' faniquito.
Faniquito por sua vez era uma expressão muito usada naqueles tempos de Píer Posto Nove - aquela faixa de areia de Ipanema - e que há muito tempo já ganhara sinônimos mais cultuados tais como chilique, piti, ataque histérico, etc. Já a expressão, mais até que uma referência geográfica, Pier Posto Nove ( aquela turma), era um deboche que Luis Sérgio Person, cineasta, roteirista, ator e gozador dos mais sérios, fazia com a turma do Pasquim ( Revista produzida por importantes intelectuais e que foi uma marca da resistência à ditadura). Millôr Fernandes, o mais novo proprietário vitalício de um nobre trecho entre pedras e o oceano do Arpoador carioca, adorava essa sacanagem vinda de Sampa , através de Person. Achava-o brilhante sem perder o charme. Porque existem aqueles que são brilhantes, mas acham-se ainda mais brilhantes do que eles mesmos. Tudo bem que essa postura até evidencia as nossas múltiplas personalidades. porém há de se ter cuidados pessoais. Uma questão séria e talvez resultante dessa multiplicidade pessoal toda é saber quem vai fazer a prova, defender a tese, assinar a lista de presença, comparecer à festa ou às manifestações. E com que roupa se vai? A corte, seja a do Planalto Central quanto outras tantas espalhadas pelo país, está bem peladinha. Apesar das pelancas.
Ironias e seriedade à parte, Ronald Roniquito era tudo isso: Person, Millôr, Glauber, Jaguar..Esse último declara que caberia aos psicanalistas desvendarem esse singular mistério que é o fato de todos eles, exceto Person, Millôr, Glauber, nessa lista nobre e saudosa, ainda sentirem muita falta de quem os esculhambava com frequência. Roniquito tinha isso de ruim e bom: era deveras etilicamente sincero e ao mesmo tempo mal educado. Esculhambava na frente do cliente. Era o mais inconveniente dos inconvenientes de ocasião. O que o salvava era a inteligência, a erudição, a generosidade - quando estava menos tocado pelo fogo- enfim, argumentos de autoridade. Certa vez, dentre as inúmeras performances, avistou e auscultou Paulo Francis com seu estetoscópio único, metamorfoseado de vodka , declarar admiração profunda por Pasolini e o seu Teorema. O já festejado jornalista/escritor acabara de assistir ao filme do cineasta e gênio italiano ( cuja morte brutal nos anos 70 sempre foi um mistério), e num dos bares visitados por aquela turma toda debulhava-se em elogios. Ao passar rumo ao banheiro do bar pé sujo carioca, ou seja, um local feio, apertado, sujo, mas acolhedor nos seus mistérios de banheiro boteco Rio de Janeiro, não escapou da provocação ferina de Roniquito que se encontrava na mesa em frente da derradeira porta, anti-sala do fedor: " Quer dizer que finalmente, Paulo Francis, o senhor nos confessa o seu homossexualismo!" Não se sabe se Francis e o seu corpanzil lhe reponderam com uma bofetada - o que muitas vezes se passara na vida de Ronald/Roniquito- mas o estrago já estava feito.
E eis que esse personagem fantástico,Roniquito, retorna mediante o recém falecimento de sua irmã, não menos notável, Scarlet Moon de Chevalier. E nesses momentos onde bússolas bêbadas insistem na direção errada, ele pode ser uma companhia bastante pertinente. Gás lacrimogêneo na veia ou como afirma baiano célebre aquele 'spray' de pimenta. Tempero local, na boa terra.
Sentaram-se pois Roniquito e outros tantos nesse mesmo outro bar, no centro da cidade, ex-maravilha. A mesa oferece lugares a mais, entretanto, o ainda Ronald não quer mais ninguém. E já tinham tantos presentes! Todos eram testemunhas cautelosas diante da previsível transformação por vir. Porém, ele também está cansado, de saco cheio, feito o barulho que vem de fora. Ensurdecem bombas, gritos, hinos, faniquitos sob forma de homenagem, uns passos, muitos passos. São milhares de passos! Aonde vão? Seria em qualquer lugar? Um lugar bom, quem sabe? A vodka já marcava presença, a fala mistura russo com brasileiro, alguns quitutes bem gordurosos adentravam o ambiente sem a menor cerimônia e o comício tomava rumo incerto. Tudo será permitido exceto o politicamente correto. Até porque não se sabe o que é ou será (seria?) correto? Nunca se saberá por certo. A não ser em cada mesa, com a sua guloseima adorada, com a sua bebida parceira, naquele momento único de incorretos.Graças a Deus! E mesmo assim há de se ter suspeita. "Tem gente na parada, porra! Vamos acordar de fato, sonâmbulos!
Roniquito vai despertando de um sono profundo. Aos poucos.
- Morri faz tempo e as coisas não mudam. Quero dizer, os nossos fetiches sado-masoquistas com fisionomia religiosa de saída e chegada. Sabe quem vai resolver essa crise, esse faniquito, para os mandatários elitistas ( nossos vizinhos ou sócios)? O bicho papão Argentino! Chegará todo paramentado com a sua guarda pretoriana e alguns dos soldados em lua de mel. Colocarão música sacra, provavelmente Haendel, ou se melhor gosto tiverem, Bach, O Sebastião abençoado. Subirão aos céus e eu lhes mostrarei, mesmo marginalizado por eu mesmo, um não-caminho. É profecia minha. De lá para cá. O que já é novidade! Ao menos uma canção diferente.
Imaginem que a soberania parece ter desaparecido no mundinho dos terráqueos. Naquele tempo, em que vivi, ainda havia uma ou outra dando sopa. Na porrada, bem verdade, pois os milicos não eram fáceis. São treinados para matar e possuem aquela hierarquia curiosa de um ficar sacaneando o outro desde lá de cima. Deve ser do céu que o mais graduado expele para baixo. E o que está mais embaixo não pode jogar para cima de ninguém. Mas funciona de algum modo. No nosso caso específico, uma situação grave de exceção, de governança, ou a moça- ex-guerrilha- toma decisões mais pontuais ou a casa pode cair. E pode cair sim. Quem garante que sim ou não? Só pelo fato do meu querer - e o meu querer de última extração não consegue nem atingir o seu alvo, e não conseguiu, mesmo e apesar, sobretudo, depois de morto- não querer por não querer? Ficou confuso? Pergunte às crianças que sempre querem ganhar todos os jogos, todas as vantagens. E não estão erradas ou certas. É assim que a máquina humana funciona, engrena. É capital, voraz. O negócio, as mediações, ou seja, fazer política, devem ser balanceadas, mapeadas, discutidas à exaustão. Para dar início a um longo papo entre sociedade e instituições.
De última extração? Que tal tratarmos cada linha que se escreve, cada caminhada, como se fosse a derradeira? Já imaginastes o Marcel Proust ( aquele gênio francês) dando voltas nos rascunhos de sua Procura? Uma boa tradução brasileira para sua obra, em 7 volumes? Escreveria pelos lençóis adentro. Travesseiros rabiscados e que valeriam uma fortuna hoje! A Celeste, sua cúmplice-governanta, teria tido muito mais trabalho. Mas o faria com prazer! Escreveu de certo modo, juntinho, aquela maravilhosa chatice. Lá do inferno- pois o céu é um saco de melancolias e lamentações- ainda não os vi. Tem que se fazer teste rigoroso para uma ascese desse nível. Não recebem qualquer um. Feito governador por esses lados. E nós, babacas outros, acreditando em representação. Para quem? Como? Imagine se alguém iria se indispor a me representar? Com que roupa? Essa mania em supor que pode haver no haver correspondência biunívoca, isto é, ponto a ponto, uma simetria absoluta entre a gente ( Há gente?), atrapalha muito. Aquela coisa que poderia nos completar: aquele menino, aquela moça, aquele cachorro quente......Um belo teatro isso sim. Aí pode-se conversar melhor. Contar uma história....
Então nos faz supor que o saco cheio a 20 centavos era muito arriscado. E os arrogantes - e pelo que se tem visto não podiam se arrogar tanto já que engoliram tanta mosca, abusaram-, a crer na representação, no ponto a ponto, no Papai Noel...Esse já vi.!Muda de nível toda hora. É de uma infidelidade partidária e no matrimônio assustadoras! Cara de pau, ô canalha! Ilude tanto crianças quanto assombrações. No Natal de Hum mil novecentos e noventa e nove fui punido severamente pois lhe chutei o saco vermelho. E ele, que me deixou sequelas equivocantes , reagiu e soltou a mão. Tomei uma porrada do Papai Noel!!! Constrangedor, no mínimo. ' Mas, muito bem feito'!- gritara uma beata com as mãos cheias de dízimos sacralizados.Olhava-me com tamanho ódio que quase me apaixonei. Ela tinha as suas razões.
E quem não as tem , não é mesmo? Estamos tão orientados, pelo que vejo na continuação de certos modos de vida, de pensar, que nos perdemos todo dia. E eu que sempre fui - com o reforço pela ponta direita, que ainda havia no futebol, do álcool-, tresloucado, mas não burro, permiti a invasão de um aparente nonsense , como se fosse possível não haver sentido; uma desrazão lúcida.
Façamos então um plebiscito para decidir democraticamente o que é ter razão, o que é verdade, certo ou errado Ou seja: uma suposta maioria e os seus votos válidos contra uma verdadeira maioria e seus votos de oposição, votos em branco, anulados ou não presentes. A tal da abstenção. E isso num pleito que é obrigatório e aplica sanções para quem não justificar o saco cheio, ou melhor , a ausência. Faz sentido os 20 centavos? Fará sentido mais um fracasso? Esse teatro burguês está enganando muita gente. Olha mais uma bomba de efeito boçal sendo atirada em qualquer coisa! Bum! Bum! Estupidez bélica.
Plebiscitos custam caro e o tempo pode não ser suficiente. Lembram do velho Ulisses Guimarães? Não o conheci por essas bandas e parece que o cadáver jamais apareceu. Será que é por isso que não o vemos vagando, flutuando? Seu túmulo foi um oceano inteiro. Seu crime foi a precipitação. Uma outra forma de arrogância. Além do que, esquecera que o Brasil é Brasil. Antecipou o plebiscito sobre forma e sistema de governo pois tinha, desde o tempo de MDB, fetiche em se tornar primeiro-ministro. Troço mais sem graça. Por que não uma sodomia científica feito Pasolini, feito o Marquês De Sade? Na região da Provence, França, o aristocrata francês e seus castelos assombram crianças e outros fantasmas até hoje. Ele nunca escondeu. Mais descente que o Noel. Bum! Bum! Pacíficos se organizam diante das tropas inibidas, envergonhadas. E isso é um perigo! Tropas também são treinadas para ferir, matar.Qual será a artificialização adequada para os rapazes belicosos descarregarem sua guerra interna e constante? Feito a de todo mundo.
Uma televisão acaba de mostrar fatos que não constituem novela patética. Saiu do ar. Por quê? Muitos falam mal , mas não trocam de sinal. Vejam! A moça está nua! O rapaz também! Agora são muitos! Seria um estupro? Pasolini liga e desliga a câmera. Posso vê-lo com clareza! Minha visão periférica contempla gritos novos: terceira, quarta, ndimensões, 'games' interativos, paridades entre parentes de fato, vínculos afetivos dissolvidos pelo simples querer e excesso no saco ( Até do Noel!). Cada um na sua. O mito do egoísta não é mau sinal. O problema é quando seu sintoma se fundamenta enquanto olhar e ação para o mundo. Cegueira, perversidade....Algumas das vicissitudes dessa postura velha. Fala-se então de egocentrismo. E aí não haverá parceria, associação.
A emissora oficial também liga e desliga seus interesses. Sempre foram palacianos! Independente se quem está com o diário oficial no colo está na extrema esquerda ou na extrema direita. Mao Tsé -Tung ou Ronald Reagan? O que importa é SOMENTE o nosso lucro. O Estado a nosso serviço. A sociedade civil - e sem ela não há possibilidade de conversa, existência de nação, estado de direito- a serviço do bem estar do Estado a nosso favor. Tudo invertido! E quando a sociedade se rebela - e ainda bem senão SOMENTE daremos bom dia para o professor doutor Sr. cachorro- essa minoria, muito competente em antecipar algumas vontades e chiliques da massa, entra em pânico. Feito a tropa inibida, acanhada. Imaginem que os cães da Polícia usam fraldas nesse momento. A cavalaria pretende indiferenciar o gás lacrimogêneo. O garboso garanhão usa colírio especial. Seu hormônio passa no teste enquanto antidepressivo. E dizem que é ótimo! Olha o cavalinho todo animado! Quatro patinhas que ressoam somente três. Seu trote exuberante.
De repente, o silêncio. O ambiente boteco fica sob suspeita. Reacionários com a cara coberta - mostre a sua careta ainda que feia- surgem sem humor. Não conseguem rir das mesmas piadas. São da turma da parana também. Enxergam conspiração em tudo. Papo de vitimizado. E diante disso permaneço paralisado. Somos tão maravilhosos que o mundo não nos entendeu. Pra que mudar hábitos tão seculares? Ainda que fósseis. A luz piscou e voltou. Não era Paolo. Seria iluminação de Rousseffs? A Presidência da República no Brasil detém muitos poderes. Efeito de um federalismo de mentirinha. Desde a Independência. Farroupilhas, Balaiadas, Cabanagem, Conselheiro, o Antônio.....
O copo, estetoscópio mimético de Roniquito, que carrega uma cervejinha ao invés de vodka ( tempos de nacionalismo) mexe-se. Sozinho, faz aquele som que parece do além. -" E aí moço? Já fechamos. A coisa ficou feia , mas agora está uma beleza. Olha só aquelas mulheres ali fora. Loiras, morenas, negras, gordas
, magrelas, sem partido'.- diz o garçom que botava mesa sobre mesa. Sem partido?- Indaguei. Então estão disponíveis?- insisti. O garçom sorriu riso largo, bonito, poucos dentes. Perguntei-lhe em perplexidade:
-Mas e os amigos de Roniquito, ilustríssimo?-prossegui.
-Amigos e Roniquito? Por aqui, pelo pouco que sei, por tudo que vi, SOMENTE o Sr. e o seu sonho profundo.
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