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sexta-feira, 7 de junho de 2013

Era uma vez uma setter irlandês.

Mila era o nome da cadela de Cony, Carlos Heitor. Escritor brasileiro, carioca conterrâneo aos 87 anos, e um dos melhores que temos. Sempre vi  Cony com respeito supremo e intimidade atrevida. A intimidade se deve à proximidade com um grande jornalista, e também acadêmico, Murilo Melo Filho, amigo de minha família. Nunca mais se viram: a família e o Murilo. Coisa do tempo que encerra resistências, vínculos. Dissolve formações outrora amorosas.' Passa lá em casa. Há quanto tempo....Há quanto tempo? Você envelheceu com esses anos a passar, não?' Gentilezas e tanta gente ficando pelo caminho. E eis que surgem essas redes sociais que aproximam quem está longe, distanciando quem está perto. Observação de uma aluna, adolescente, de minha Mônica. Quem sabe não estamos todos procurando algum Murilo outro por aí? É só colocar uns nomes próprios, melhor seria teclar ou digitar, e você retorna ao jardim da infância da grande rede.
O presencial para nossa espécie, por mais  nômade que ela já tenha se pretendido, faz diferença. No presencial você encontra o cheiro, o jeito, o tropeção, a entonação, aquele sofá de estimação, a falta de educação, o desencontro, o cuidado também se diz. Não há psicanálise possível sem que tenha havido o primeiro embrião, fruto do contato ao vivo, por exemplo. Nesses casos estamos transferindo um monte de coisas. E a via é de mão dupla, mas não simetrizam.
O presencial pode apresentar também um comando, uma coisa retangular, escuro-claro, com números e símbolos a serem tocados, apertados, manuseados. Seria um fetiche? Chama-se controle remoto televisivo nesse caso clínico específico, chamado prosa pequena. Acariciado, pode conduzir qualquer um de nós a uma rede sem fim de imagens, sons, histórias, notícias, tesões, e mais histórias e outros fatos.
E ali se faz Cony. Com a sua voz grave característica de Carlos Heitor. Começa a declamar sobre Mila, sua setter irlandesa, falecida há alguns anos e que passara 13 anos com ele, numa entrevista para o veículo televisivo. A setter fora um presente de Adolpho Bloch, seu ex-patrão e amigo já falecido, assim como Murilo Melo, o amigo sumido ainda vivo, de minha também sumida família. Presenteado presencialmente por Adolpho, a cadela mudaria sua vida. A profecia fora feita e dita por quem lhe ofertara o tal presente. O patrão amigo percebera que poderia, a cadela, ser-lhe uma boa companhia. Uma cadela de verdade! Com aqueles pelos castanhos, amarronzados e aquela altivez de caçadora. Caçara Cony.
O empresário amigo, um dos mais importantes do ramo das Comunicações Oficiais do Brasil, iniciara tão somente o flerte. Foi Mila quem decidiu por Cony. Clarice Lispector, sua colega escritora e também amiga, sentenciou que ao perder o seu cão notara que não havia sido ela que tinha tido um cão, e sim ele que havia tido uma dona. Mila escolheu Cony que quase a recusou. Alega que não tinha jeito com cadelas tão amarronzadas. Com outras tudo bem! Já tinha experiência....
Tentou devolvê-la a quem lhe presenteara. Quando deixava a casa de campo da importante família Manchete, aonde tinha ido para entregar-lhes de volta a  cadelinha ainda pequenina, percebeu aquele vulto escuro e peludo passando por debaixo de suas pernas enquanto abria a porta do seu carro. Era Mila! Correra como uma velocista olímpica tentando alcançar o seu - já há muito escolhido- dono: um célebre escritor imortal ( imortal porque os autores do tamanho dele não morrem. E não somente por pertencer à certas academias). Saltou rápida, decidida, em direção ao banco do carona e com aquela cara sapeca e a língua enorme, rosa claro, enaltecendo o seu esforço pela paquera. Parecia lhe dizer: 'Vamos lá imortal! Aqui estou para mudar a sua vida, pois é minha também! Prepare-se portanto, já que lhe darei trabalho. Depois, advirá a recompensa quando puder conter meus instintos infantis, meu etograma completo de cão. Completo , porém mais empobrecido do que o seu. Eu sei, eu sei! A mim só caberá aquela ração especial harmonizada com um pouco de água. Fazer o quê? Dieta canina. Cuidados com os carboidratos, triglicerídeos nas alturas. O pelo perde o brilho. E sem o meu pelo a brilhar seria como ficar careca, no caso da sua espécie! Ah! Foi mal.!Não quis lhe ofender, mas será que alguns dos seus pares poderiam me dizer se já degustaram carboidratos? Eles devem ser grelhados ou cozidos? E os tais triglicerídeos? Harmonizam com água? Mas também me faço imortal, querido dono! Ao menos para ti e suas lembranças. E se não for pedir muito, estarei imortal de fato, pois vai dedicar-me um texto bem bonito. E que sabes tão bem produzir. E são tantos....'
Imagina-se o esforço do escritor ao ter que mudar toda sua vida, e ele já não era mais criança, após a invasão canina ao seu esconderijo. Quem já morou sozinho por muitos anos sabe o quanto é difícil administrar novos sons, odores, uma nova divisão, o repartir, enfim, o tal presencial.
Cony conseguiu. Um herói de fato. Na verdade, ou seja, na sua versão, conseguira muito mais. Mila trouxe a literatura, no caso especifico a prosa, de volta para o seu mundo. Fazia anos, que não escrevia para além das crônicas semanais. Resistia por alguma razão. Quem sabe a morte do pai - e nesse episódio Mila foi seu melhor anteparo- o tenha entristecido a tal ponto que desistira da prosa. Segundo Cony, vinte anos distantes estavam: a prosa e seu mentor.
Adoentada, a cadela caçadora prestes a se aposentar choramingava baixinho quando o dono dileto encerrava os trabalhos habituais. Fechando o computador, dirigindo-se à cama para repouso e a cena se repetia. Mila se aconchegava e reclamava. Afinal, era só o início da noite após pôr do sol cinematográfico no Arpoador, no Aterro do Flamengo, e ele a desistir por hoje!? Impossível! Sedução ganha. Não mais com a língua rosa para fora, arfando de euforia pelo encontro amoroso, mas pelo choro de quem estava se despedindo. Ela se despedia por ali e lhe sugeria um recomeço. No início, o dono e toda a sua sintomática de dono, resistia. Não entendia o que a companheira de quatro patas lhe clamava. Depois, cedeu. Escreve então um dos seus melhores livros.
Foram treze anos de parceria leal, diz o escritor. Bloch estava certo. Ele, Cony, que foi uma espécie de 'ghost writer' do chefe amigo, teve a sua. Ainda que não se expressasse através dos verbetes oficiais, da gramática aprisionada e aprisionante do nosso mundo pessoa. Tinha, Mila, o seu singular modo.
 Era uma vez uma setter irlandês.

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