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quarta-feira, 3 de julho de 2013

A moça-velha.

Residia numa cidade do interior do Estado de São Paulo, fazia muito tempo. Mudara-se para lá na vã tentativa de se encontrar com Deus. Botara na cabeça oca que seria freira, não tanto por convicção religiosa, mas para disfarçar a humilhação de ter sido abandonada pelo noivo bem mais velho que ela. Naquele outro mundo, anos 40/50 do século passado, era comum nas famílias burguesas brasileiras que, com toda sintomática patrimonialista, mazombista, religiosa reinantes, os pais dirigissem os vínculos afetivos dos filhotes, sobretudo das filhas. Eles, os senhorios caras de pau, poderiam ter as suas amantes, frequentar os seus bataclãs, exercer seu machismo, despotismo, sem problemas e com bastante arrogância. Podiam arrogar-se até porque contavam com o apoio de boa parte das....mulheres. Afinal, eram tratadas - e algumas se consideram até hoje- como seres inferiores aos destemidos e estúpidos machos. 
Portanto, era hábito arrumar marido, o chamado bom partido ( resta saber para quem?) , para filhas meio desesperadas e sem projetos outros. Sem projeto a libido fica doidinha. Aquilo força para lá, para cá, vai para frente, regride, estaciona, mas não cessa. Não deixa de aporrinhar. Meninas casadoiras. Muito arriscado esse ofício. Até hojendía. 
A velha- moça que se mudara de mala sem cuia para uma cidade desconhecida - curioso é que ficou até o fim com sotaque de caipira-  fracassou no seu encontro marcado com Deus. Mesmo agora, depois de morta, não mandou recado ou apareceu 'in loco' para contar sobre esse goooooooooozo divino!
Criou tantos problemas no convento, para onde se mudara decidida a se vingar do ex- noivo fujão, que foi expulsa. Existem muitas versões sobre o que se passou. Nenhuma é digna de se crer, pois só havia uma testemunha: a velha-moça tomada de ressentimentos. E alguém movido só por ressentimentos não se faz confiável. Feito a que tem a língua solta ou o seu oposto a língua presa. 
A vingança teria sido a transa divina se possível houvesse. E amaldiçoaria por tabela o senhor que escapara a tempo. Palavra de algumas testemunhas familiares. 'Muy amigas'? 'Por supuesto que sí'!
Por essa e por muitas  outras - mesmo que a maior parte delas jamais foi compreendida racionalmente pela própria- tentara voltar à casa dos pais. Foi recusada. Dizem que é porque o pai, religioso da boca para fora, não aceitara a decisão da filha - a sexta criança de um primeiro casamento que terminou com a morte da esposa, mãe das seis filhas, no parto dessa última pretensa freira- de se tornar, segundo ele, uma beata. É curioso que certos frequentadores de templos religiosos o façam sem muita fé. Regozijam-se ao afirmar que são católicos ou crentes, porém, não praticantes. O que seria uma fé praticante?
O destino em dado momento não poderia ter sido outro, pois pode-se imaginar o peso para uma criança, diante das cinco irmãs mais velhas e de um pai pouco democrático, pelo fato do seu nascimento ter causado a morte da própria mãe de todas. Barra pesadíssima! Jamais superou isso. Há outras tantas testemunhas.
Corajosamente, teve que se virar. Tornou-se uma professora primária. Um dos ofícios mais nobres que existem. Era também adepta dos esportes futebolísticos e torcia para um clube- dos mais antigos do Brasil- e que tem como mascote uma macaca. Frequentava estádios e palanques ( tradição familiar). Sindicalizada, perambulou por alguns partidos políticos e protagonizou episódios polêmicos e arriscados. Num deles, ofendeu o candidato à prefeitura da cidade. Noutro, atirou uma bandeira do partido que apoiava na direção do candidato adversário. Gritou palavras de ordens, leia-se, palavrões. E odiava um certo político barbado. Sindicalizado feito ela. Era uma incoerência de gestos, falas, discursos, opiniões. Aliás, língua solta, opinava sobre tudo. Nada mais brasileiro. O problema é que  se recusava  em não aprender a  escutar. Daí a língua solta.
Rompeu com a política, afinal, ninguém lhe ofereceu emprego melhor. Nada mais brasileiro também. 
Suas transas pessoais se esgotavam então. Aposentadoria, os estádios e palanques, perdas familiares, fofocas a menos. Mediando tudo através da televisão ( o que pode ser uma péssima aposentadoria) , indignava-se, incomodava-se ao ver o casal bonito, jovial, aquele garotão com aquela garotona ( duas garotonas ou dois garotões então, levariam-na ao pronto socorro!),  beijando-se, beijo apaixonado, línguas soltas pela sensualidade, no faz de conta da teledramaturgia. " São umas putas essas atrizes'!- exaltava-se. Teria se permitido finalmente um orgasmo ? Quase diviiiiiiiiiiiiiiino?! Parece que não. Nem ao menos na realidade das virtualidades.
Morreu só. Até aí feito todos. Inclusive brasileiras, brasileiros. Imagina-se que no seu enterro compareceram políticos ofendidos, colegas professores, ex-craques de futebol, a macaca mascote, as testemunhas parentes, o fantasma de um pai. Quase um Deus.
Talvez uma única rosa sobre o túmulo- comprado e pago em prestações custosas- e um dizer, seu epitáfio: " Aqui tenta descansar aquela velha-moça que viveu oitenta e tantos anos sem jamais namorar, jamais beijar". 

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