Artaud escreveu aquele belíssimo texto sobre um Van Gogh suicidado. Ele mesmo foi um suicidado. Poucos, muito menos aquele médico, conseguiram escutá-lo.
Um dia, apresentou-se para análise um rapaz diretor de teatro. Naquele momento, dirigia uma peça sobre o poeta/escritor francês, morto em 1948, aos 52 anos de idade.
Falava feito metralhadora que não permite nem ponto vírgula. Quanto mais umas vírgulas a recuperar o fôlego. Já soube de gente que faz assim: " quando cansar coloco essas tais vírgulas".
O rapaz diretor era paciente terminal, pois à época não havia tratamento eficaz para o HIV. Era angústia transitando pelos palcos. Sabemos que a Aids tornou-se uma enfermidade crônica e que requer cuidados constantes. No início, existiam aqueles coquetéis insuportáveis, repletos de efeitos colaterais. Não que eles tenham desaparecido, esses 'side effects', com a invenção das novas drogas, mas houve considerável redução e melhoria, por conseguinte, da qualidade de vida das pessoas.
O drama maior era ter que compartilhar com as pessoas sobre a doença. Os pretensos candidatos a um romance, desaparecem. Opta-se então por esconder o que se tem, o que se carrega no sangue. Uma batalha de esconde-esconde, que de tão desgastante, fazia emergir sintomas colaterais, alguns graves, e que poderiam trazer as temíveis infecções oportunistas. E qual é a infecção que não é oportunista? Qualquer gripe é assim. O vírus entra e abre as portas para as bactérias, sempre presentes e à espreita, agirem.
O tal diretor, e ator deveras, sabia do que o aguardava. Vociferava , Artaudianamente, toda aquela dor, aquele "dead line" irrremediável. Irremediável para todos, mas ele não se via ilusoriamente tomado por certos saberes míticos que deslocam, nas nossas mentes, essa condenação, esse tesão de sumiço.
Aprendi que a Psicanálise é uma ferramenta, na verdade é um modo de pensar.
Ali, restava somente acompanhar os passos e que o já sabido fosse mais leve.
A nossa transferência, esse vínculo que se estabelece entre curador e curando e que sem o qual não haverá análise possível, chamou-me atenção pelo fato de que , frequentemente, a Pessoa que pode ou não exercer essa função analítica parecia não existir. Aquele olhar passava por cima, por baixo, por viés....
O adorador de Artauds atropelava pessoas. Considerava-as feito coisas tão somente. Logo, tinha conflitos com a direção das pessoas-atores. Não com o texto. Tudo era só articulação. Ele era um diretor do século passado, fim do século XIX talvez. Homem de ciência e suas manipulações de laboratórios, de pipetas....
Esse conflito com os atores-pessoas a serem dirigidas, trouxe-o ao consultório.
Um dia , deixei-o mais uma vez só. Para concluir assim, acreditei que ao catar uma água ou um café, no aposento ao lado, efetivava a solidão que já era imensurável, independente da presença física. Ao voltar, lá ainda estava: manuseando os brinquedinhos em cima daquela mesa. Aquelas coisinhas que a gente traz de viagem, para esquecer todo dia um pouco mais.
Agora, lembro-me desse moço que sumiu.
Soube que faleceu num ensaio teatral ( e qual é o ensaio que não é teatral?), em São Paulo, cidade natal. Tinha levado o seu poeta francês a passear perto da família. Pode ser bem perigoso, tratando-se sobretudo de um Artaud lúcido pois louco. E quem os teriam suicidado senão a gente toda?
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