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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Uma entrevista , uma lembrança.


Ouvindo a colega que revela ao mundo uma importante passagem na sua vida, um talento (desconhecido por alguns) , um outro personagem a mais , pode-se evocar 'recuerdos'. Histórias que se tocam, feito a nova tendência cinematográfica , que não é nem tão nova assim, se levarmos em conta produções realizadas a partir do final do século XX, onde diferentes histórias e seus respectivos personagens se intercalam, transam, misturam-se, num roteiro de aproximações.
Pois então, nossa amiga recordava momentos experimentados quando trabalhara numa importante companhia teatral carioca. Naquele tempo, início dos anos 60, essa companhia ,Teatro Tablado, era uma espécie de vanguarda na formação de jovens atores e sobretudo nas montagens de peças infantis. Maria Clara Machado, sua mentora, foi uma das figuras mais importantes da cena teatral brasileira. Seu pai, Aníbal, um intelectual de ponta.
A casa da família em Ipanema abrigava os famosos saraus. Aqueles encontros musicais que mesclavam música, teatro , literatura e que normalmente ocorriam aos Domingos. Escolha sábia , já que os Domingos foram feitos , ainda mais naqueles tempos, para melancolias. Até hoje, certos sons , alguns tons, nos dão arrepios , visto que remetem aos pesadelos escolares obrigatórios , verdadeiros imperativos de opressão a nos matar aos poucos no dia seguinte. Matava-se a criatividade, a disponibilidade para se fazer de outros modos. Aquele evento, o tal sarau, era um momento de suspensão das estupidezes presentes e vindouras. E nós por ali a espiar, da janela da sala de jantar, do terceiro andar, desse edifício que me habita e que se postava ao lado daquela casa.
E de um colo outrora amoroso, acolhedor, chamado mãe, o bebê que aqui posta lembranças era sacudido pelos sons e arranjos que subiam pelas paredes, pelos postes de luz, pelo cimento fresco da obra ao lado. Balançavam a criança ao som do sarau de Aníbal e sua Clara filha.
Esse período, o dos embalos do bebê aos domingos à tarde, era um pouco posterior ao ano celebrado e comunicado à imprensa - celebrado hoje, e daí a razão da reportagem televisiva , pois comemora-se os 50 anos do Teatro Tablado, agora em 2012- , já que a criança só apareceu em 1966.
A mãe amorosa , por sua vez, ensaiava em seu piano, marcado pelo romantismo de um Chopin, Bruckner , Liszt e um choro - não do bebê - , mas de Ernesto Nazareth ( som frequente nos saraus junto com Villa Lobos ), e portanto tentava se fazer escutar. Acho que ela queria dar uma passadinha por lá. Dizer uma Mazurka ou um Noturno, carregar um sonho de amor, sabe-se não. Jamais foi. Era tímida, escondendo arrogâncias. Tinha sido aluna dileta de Oriano de Almeida, célebre pianista. Paraense nascido, mas radicado a vida quase toda em Natal, e cuja fobia de avião atrapalhara a sua carreira. Venceu um festival para intérpretes de Chopin, em Varsóvia, terra do moço.
A mãe minha , aquela do colo amoroso, um pouco  depois, seguindo os passos do mestre , foi aluna , aqui no Rio, da não menos conhecida, Magdalena Tagliaferro. Oriano morreu há alguns anos, sob os ventos das dunas natalenses.
Sempre havia, desse modo, uma desculpa para não ousar um cadinho mais. Havia, por exemplo, uma formação diagnosticada como asma e que atrapalhava , mas que também era gozo bem prezado. Afinal, chamava atenção. Era um Noturno aterrorizador.
Não foram poucas as ocasiões que a vimos sufocar. Qual era o tom daquilo? O que se calava então? Sem resposta. Apenas elocubrações....
Na tal entrevista da televisão, que me atinge,  e iniciou essa conversa de agora, segundo o dizer da amiga, após saírem de um desses encontros memoráveis, santuário dos Machado, seguiam para um bar tipo Rock and Roll chamado Zeppelin. E assim o périplo Nazareth - Rock and Roll se fazia.
Anos depois, o Zeppelin também desapareceu. Não explodiu , nem tampouco houve sabotagem nos céus estadunidenses, igualzinho o dirigível. Virou foi samba.Tornou-se mulata. Oba! Oba! Houve quem gritasse assim. E era desse jeito que o lugar se dizia.
Tinha sargento e tudo a comandá-lo. Botafoguense, o sargento virava general no comando das suas musas ou ao guerrear pelos artistas da bola. Jairzinho - uma espécie rara de discípulo de Mané Garrincha, era um deles. Na Copa do Mundo de 1970, realizada no México, para além de Zeppelin , Jair tornar-se -ia furacão! Perguntem aos gringos da Inglaterra, da Itália, do Uruguai, o tamanho do estrago que os vendaval Jair provocou por lá.
Crescido então o bebê - sempre haverá controvérsias entretanto- o movimento samba-sarau despertava atenção dos transeuntes. Aquela mulatice toda. Aquele vai e volta dos artistas dos picadeiros diversos. Atraía gente dos mais diversos cantos.
 Um tio, certa noite, encantou-se. Seus olhos claros lembravam os do Chico famoso, o Buarque de Holanda. As mulheres adoravam, mas ele também era tímido. Feito a irmã que não foi à festa dos Machado. Eles, os irmãos, tinham esse tesão de espiar, de butucar de longe.
Os olhos sedutores desse parente tão próximo, e que vivia distante da gente, a ponto de não poder encontrá-lo a uns dois ou três passos de um simples querer, fixaram-se nas curvas daquela mulata definitivamente. Declarou, com firma reconhecida e tudo, que preferia aquelas curvas do que as curvas da estrada de Santos , tal como cantarolou o poeta-rei.
Ele as marcou implacavelmente feito zagueiro brabo que só Furacão-Jair sabia desgarrar-se.
Avisei o pai, chamado meu, sobre o que se passa. Esse pai invejoso  orientou o pequeno que cresceu de escutar saraus: " Vai lá é diz para ele que mamãe chama para jantar". 'Inocente',  missão cumprida. "Papai! Mamãe chama, na verdade quase clama, que o jantar está na mesa!Oba!Oba!Papai!"
O tio bonito-solteiro, perplexo, olhou-me boquiaberto. E ele a supor que o pequeno, ex-bebê, sobrinho preferido, era confiável. A musa, indignada, retirou-se. Para sempre. Saiu de acordo com os bons preceitos feministas que Millôr Fernandes sempre reconheceu: o movimento dos quadris. Um espetáculo!
Foi a primeira vez que vi um ídolo meu, de minha então breve história, ficar com cara , não de curva abençoada da mulata, mas com cara de bunda pelanca, necrosada pelo constrangimento, feito zagueiro caído, esparramado pelo chão. Dá-lhe Furacão!
A inveja, o ressentimento e o ciúme são formações muito perigosas .Ou ainda , sabiamente dita por um anônimo - esses todos a quem chamamos em algum momento de nós, em situação genial , afirmando portanto: 'o que os olhos não vêem , a paranóia inventa'.

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