Marcadores

domingo, 15 de maio de 2011

Vida de obituário

Olhei para mais um obituário.Ali,procurei por ex-pessoas.Sim,figuras que não estão mais disponíveis.Estiveram e não estão mais.Contudo,existiram um dia.E isso é irreversível,assim como o seu não haver mais.
Aos 15 anos,preparava-me para o primeiro carnaval adulto-matinê.Adulto já que iria sem papai ou mamãe por perto.Matinê porque era vespertina a tal festinha de pula-pula.Na noite anteiror à festa, olhei pela janela e vi o amigo tirando o pó do automóvel recém chegado de presente.
Era um rapaz enorme ,bonito,péssimo jogador de futebol e generoso.Tinha uma daquelas bicicletas que os operários dessa época também possuíam.Chamavam-na de barra forte.Pilotei a barra forte algumas vezes e isso me orgulhava. Fingia que não entendia a generosidade do amigo barra forte para comigo.Sim,fingia.Era sabido na vizinhança- que se chamava superquadra- que ele tinha uma queda pela minha única irmã.Na verdade,o que o motivava ainda mais era a rivalidade, intencionalmente sustentada , com o amigo mais próximo.Grandão feito ele e que se enamorara da moça em questão por algum tempo.Tempos de cuba libre,Bee Gees,calça de jeans de botõezinhos,tênis americano,camisa Hang ten,revista POP de surf, Waimea e sonhos.
Os norte americanos que, viviam bem próximos a nós ,estavam com o estoque de narcisismo e arrogância nas alturas.Sacaneavam os vietnamitas e se ferraram no fim.Tomamos as dores da turma asiática e partimos para o confronto.Resultado: um ianque com a testa aberta mediante pedra perdida.Festa dos brazucas de calça curta.
Enquanto divagava sobre esse tempo,nessa altura se passaram cinco anos,ou seja,uma eternidade para quem ainda contava somente 15, meu amigo sumiu de vista.O carro estava sem pó e brilhava solitário.Lembro-me daquela imensa antena de rádio amador no pára-choque traseiro do veículo que ,levava o nome da cidade-capital.E ele se gabava por causa da antena.Dizia que se comunicava com o mundo afora.Algo inédito para o momento.O mundo afora era muito afora.Tudo era distante à beça.Gringo era gringo de verdade.Não tinha isso de globalizar por não sei o quê!Chinês e todo o bando comunista fechadinhos dentro e afora.
Quando meus pais viajavam para o exterior,faziam mais que viajar.Aventuravam-se no tal mundo afora.Interurbano caríssimo e sussurros saudosos.Eram tempos de mundo a descobrir.Segredos resguardados.Tínhamos medo!Será que voltam?Perguntávamos frequentemente.O cartão postal surgia com uma marquinha arredondada a lhe fazer quase que uma marca cenográfica.Tinha sido lágrima antes de se tornar mancha amarelada.
Na Itália,minha mãe chega no dia em que um Papa morre.Ela ficou acenando lenço branco e sussurrando que queria ver o santo-moço de qualquer jeito.Viajara de tão longe....Vinda lá do mundo afora e o sonho postergado.Quanto azar.
Anoiteceu.A expectativa aumentava com a idéia de um dia seguinte festivo.Vi televisão antes de sonhar.Era verão no resto do país,mas por ali a temperatura era primaveril.
Uma cigarra berrou alto.Talvez o companheiro tenha partido para outros bailes.A vida da cigarra é muito breve e ela procura aproveitar cada segundo ,pois será o último mesmo.E o último segundo já se foi.
Amanheço. Minha mãe aos prantos ,esconde o rosto.Minha irmã acaba de receber o telefonema que me diz que, nunca mais aquela cigarra e seu berro aflito se farão presentes.Na madrugada,agora eternizada, o pó,o brilho,a antena gigante,daquele carro-presente,do amigo gentil,sumiram para sempre.
Entardeci.No cemitério,primeira visita minha, não entendo.Vejo o horror na dor das três irmãs do amigo morto.O parceiro de aventura,com o braço imobilizado por um gesso,tenta se manter vivo.Sobrevivera ao acidente.
Meu primeiro carnaval considerado,nunca houve.Ao invés de marchinhas,o Grupo de Música Estadunidense Alan Parsons Project e o seu 'Time".Tempos de vitrola.
Folhear o obituário é lembrar de Lamartine. O poeta francês nos alertou que o livro da existência não se pode ler duas vezes.
A barra-forte-bicicleta foi doada.O amigo fez testamento,aos 19 anos.
Manipular o obituário de hoje,trouxe-me o seu sorriso de volta.O carro botou a poeira lá pra frente,mundo afora.

Nenhum comentário: