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domingo, 29 de maio de 2011

Brincando de cachorro

O cachorro do vizinho gostava de mim.Ele era de um tipo que estava na moda:pequenino e feio.
Beleza,felizmente,tem gosto pra tudo.
Ele era igual a um outro cachorro,um cachorro paulista,metido a acadêmico que de tão educado,apesar de mimado,chegou a ser chamado de Sir.Não mijava fora do vaso e respeitava regras humanas.Na casa paulistana,fazia-se presente mesmo com a sua pequenez.
Latia pouco.Era marrom e branco.Deram-lhe um nome idiota,mas ele fazia pouco caso.
Enquanto alimentavam-lhe, tudo ia muito bem.Gostava de uma boa mordomia e sabia cultivar os vínculos importantes.Não agredia aliados."Cachorro sem vergonha"- alguém rosnou.'Só gosta de quem lhe faz bem'-concluiu,antes de morder o próprio lábio.
'Discordo'- disse-lhe eu. 'Acho que ele é sábio'-quisera supor.
A gente bem sabe o quanto esses movimentos histéricos de querer bem a quem não nos quer causam estragos,mas não deixa de ser uma forma de divertimento como outro qualquer.Cada um tem o que ou o quem não lhe quer que se merece.E ninguém tem coisa alguma a ver com isso!
Quando se resolve ter coisas demais a ver com isso,somos racistas!
Afinal,aquilo que nos escapa,que se porta e comporta diferenças que não sejam as nossas habituais tolices -apesar de supormos que são maravilhas- necessariamente é esquisitice.Considera-se algo menor,inferior.O hábito meu é que é bacana,normal,elegante,lúcido.O outro é estúpido.Até pode ser....mas ele tem esse direito.Desde,é claro, que não se queira sacanear a existência da minha tolice.Se ela não compromete uma outra existência,se não lhe extingue,pode estar valendo.
Certa vez- mas ainda permaneço atrelado- cachorro e eu fomos iluministas.
A cidade luz,Paris,estava toda acesa.E Lamartine,romântico ,visitou-me.Mallarmé,inconformado,rebelou-se.Achou tudo e os cachorros muito chatos.Quase os asfixiou.
Esses rapazes iluminados cuidavam bem das sombras.Cachorro escaldado também.Fareja antes,para depois morder e/ou soprar.
Diante de mim há um focinho de um cão feio.Esse,que pertence a um vizinho de outrora,tem aristocracia no nome.Chama-se Lord.
Alguns o consideravam gracioso.Eu o achava feio feito o outro lá de cima,do início dessa história..O tal de Sampa.
Gostava de mim até o meu focinho encontrar o dele.Mordeu-me vigorosamente.Levei 2 pontos não sei onde.Chutei-o antes dos pontos.No que fui acompanhado pelo seu dono,meu melhor amigo de então.
O amigo ficou constrangido.Não queria mais acompanhar-me no passeio do dia seguinte.Consegui demovê-lo do gesto.Ele tornou-se rebelde por um breve entardecer.Fiquei com medo desse rosnado novo.Coisa típica de reacionário velho.
No mês seguinte,despediu-se de mim com um aceno de mão.Continuava constrangido?Meus pontos tinham cicatrizado,mas não o meu rancor.Teria ele percebido?Contudo,todavia,entretanto,não era para ele aquela praga toda que rogara!Era canina a vingança!
Mudava-se naquele instante para uma casa bem distante.Longe de minhas vísceras e músculos.Haja coração!!Que saudade de cão!
O cachorro feio que mordia parecia me sorrir.Não ousara,porém,lançar-me acenos de patas.Nunca mais brinquei de focinho contra focinho.
E o meu amigo presentificou-se numa saudade a mais.

Um comentário:

Anônimo disse...

amigo querido, nossas esquisitices amadas, essas que a gente cultiva a pão de ló. E aí qdo ficamos velhos, viramos escravos daquilo, elas aparecem em primeiro plano. cansativo...