Marcadores

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Entranhas de baixo.

Um incômodo. Vindo de baixo. Permanecer numa certa posição estava se tornando impossível.
Resiste-se. Após uma inspeção cuidadosa e tendo aquele espelho íntimo para refletir o que não se consegue enxergar, a suspeita parecia se confirmar.
Fazia alguns meses que Ariobaldo utilizava um medicamento que poderia levar à constrangedora constipação. 'Mas como isso pode ocorrer? Por que comigo?' Frase típica do vitimizado patético.
O intestino sempre funcionara bem. Às vezes, até demais. Isso era motivo de orgulho. Nas eventuais consultas médicas vinha sempre aquela pergunta : ' O senhor evacua bem'. Constrangimento que normalmente era quebrado por aquela outra pergunta: ' O senhor bebe?- indagou o homem de branco. Sim. Aceito- respondeu Ariobaldo'. Afinal, não se deve recusar uma oferta como essa. Muitos considerariam falta de bons modos.
Constatado que o interior da bunda estava adoentado, aplica-se o procedimento caseiro na primeira tentativa de salvar o único traseiro que se tem. Pomada da vovó que passou para mamãe e que ainda funciona bravamente. Briosa, tinhosa, destemida. A pomada segurou o desconforto. Um alívio.
Prudentemente,  a bunda decide procurar pelo especialista. Estranhamente- ou seria preconceituosamente?- existem especialistas nessas partes menos pudicas. Mas será que haveria algum desses ou dessas com horário disponível mediante a urgência do caso? E se houvesse tão somente um horário disponível com uma doutora? Uma mulher?Como seria? Exibir a bunda e suas entranhas para uma desconhecida? E ela terá que manuseá-la... O narrador não consegue  imaginar. Ariobaldo muito menos.
Vejamos o preconceito. Por que não uma senhorita?
A questão é que o preconceito não pertence tão somente ao digníssimo proprietário do traseiro adoentado, mas esse modo de existir dessa espécie humana estranha chamada cultura.
Proctologista menina é coisa muito rara.  Já perceberam?
Livro na mão -- aquele com a lista dos médicos e laboratórios credenciados- dois nomes se exibem. E agora, Ariobaldo? A quem recorrer ? Não há recomendação. Par ou ímpar? Adedanha ? Lembram do joguinho? Maçã , jaca ou salada de frutas ou mista? Não era assim?
Os dois indicados para a manipulação das entranhas possuíam consultório próximos à residência do traseiro enfermo. Já que não havia nenhuma referência pregressa acerca dos doutores, o primeiro lhe conquistou. O segundo viria depois- óbvio- do primeiro. Como quem vem ... ôpa. Essa letra é do Chico Buarque. Meninas, senhoritas, mulheres, Atenas e um Buarque de Holanda. Conheceria, o Chico, alguma proctologista? Ou guardara o segredo para si? Poder-se -ia chamar Geni? Mesóclise. Não, Ariobaldo. Mesóclise não é o nome de uma proctologista grega e médica do Holanda. Vá estudar um pouco.
Decidido então. O primeiro da lista conquistara as partes íntimas de Ariobaldo.
Roupa escolhida no armário com esmero e a solidariedade da companheira. Perfume. Sim, perfume.
É preciso aparentar -mediante tantos personagens presentes- uma aparição perfumada, cheirosa.
A caminhada até o'matadouro' é curta. Talvez uns 400 metros. O prédio lhe era familiar. Naquele mesmo endereço, outros especialistas foram consultados. Menos mal. Essa familiaridade trazia algum conforto. Quarto andar? Pode ser. Era o quarto andar e o consultório não combinava com nenhum outro quarto visitado. Secretária muito simpática. Uma senhora. Um bom sinal. Será que o acompanha há muito tempo? Melhor não perguntar. Apesar da curiosidade, o cu de Ariobaldo ansiava por outras medidas. Os minutos passavam, passavam e nenhum sinal que o cu avariado fosse receber a devida atenção pelo tal doutor. Xiiiii! A sala começa a se encher. E agora? Qual o artifício para iniciar uma conversa com esses novos colegas tendo como tema principal essa região, no mínimo, constrangedora? Para um primeiro encontro- ainda que um 'blind date'- seria um pouco demasiado. Não acham?
Elucubrações à parte, esse senhor grisalho sentado ao lado do que parece ser a sua esposa deve ter experiências de sobra. E ele está bem! Sorriso de dentaduras e uma expressão serena. Mas.. Por que está sentado meio de lado feito barco à deriva? Xiiiiii...
Antes do pânico se instalar, a senhora secretária chama pelo nome de Ariobaldo: ' Pode entrar, Sr.'
É. A idade chegara. Um outro doutor havia lhe dito que após os 50 anos a validade expira. Os tais cinquenta e um não estavam ofertando uma boa ideia. Pode entrar senhor.... Esse chamamento de 'senhor' ainda ressoava enquanto se dirigia ao médico.
Jaleco branco, barba da moda. Voz grossa. Um certo tremor nas mãos... Seria doença? Estaria nervoso? Conversam. Não se trata de um papo. É uma anamnese entre o Doutor e aquele Senhor. Vocês bem sabem. A fim de se conhecerem um pouco melhor. É uma DR clínica.
Fim da entrevista. Uma maca lhe é apontada. 'Deite-se assim, assado'- disse-lhe. Kama Sutra? Não. Bem pior. De repente, aquele dedo por entre luvas e técnicas penetra fundo. Porém, é preciso que se diga: o cara é profissional.
Passado o primeiro trauma para os iniciados, ele já estava de volta à mesa de trabalho. Rapidinha.
'É... Uma hemorroida. Externa. A bem dizer'. Ariobaldo ficou intrigado. O que seria, por exemplo, uma hemorroida a mal dizer, doutor L.?
'Hemorroida? Que horror! Tanta pereba para se ter e essa 'óida'  com esse nome, aparência e local detestável. E como dói.Mas doutor? O que seria uma hemorroida a mal dizer? Insiste. Afinal de contas, o rabo é meu. - suplicou-lhe.'
Olhos negros, fixos, a barba da moda entre os dedos que lhe fazia carícias e o seguidor de Hipócrates ressuscita a frase de um personagem famoso de Melville, o Bartleby. Aquele escriturário.
'Melhor não'.


Nenhum comentário: