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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Armando Rodolfo, enfim, foi ao teatro.

Armando Rodolfo estava no teatro pela primeira vez. Acompanhado de sua mãe que o tinha convidado para prestigiar a irmã que, por sua vez, exibia virtuosidades juntamente com a sua turma de sapateado. O cenário: um grande teatro em área nobre da cidade. E com a platéia alvoroçada.
'Tap Dance'- garoto. Irmã mais velha adora esse tipo de provocação. No século passado, o clã das irmãs utilizava o pejorativo 'pirralho' a fim de encerrar qualquer argumentação. Um nocaute. Portanto, 'pirralho' e 'garoto' são algumas das armas quase letais nessa batalha familiar intensificada no fim do ano com seus festejos desgastados, previsíveis. Por exemplo: um ano termina e um outro parece que tem que começar. Para quê tanto imperativo? Algo tão opressivo. Junte-se a isso um calor tórrido e pouco civilizado pelos lados mais rebaixados do Equador imaginário.
O garoto estava impossível. Mudou de lugar algumas dezenas de vezes e agindo assim supunha iniciar um balé  sedutor na direção de sua mãe. Estaria suicida, o pequeno Armando? Ataques de ciúmes por causa do olhar amoroso, materno, desviado para sua irmã? Sim, pois sua mãe procurava- quase à beira de um ataque à Almodóvar-, e mesmo com as luzes apagadas e o espetáculo a começar, pelos teclados do abominável celular. Essa jovem senhora não respeitava as recomendações de manter o tenebroso telefone século 21 fora de cena. Imaginem!- teria olhado em voz alta e plena.- Se vou deixar de registrar esse momento inédito, único, da minha exibição (ôps), quero dizer: da performance da minha única e mais querida filha! Armando Rodolfo não gostou. Ela, ao perceber seu desapontamento, explica-lhe que colocara tudo no feminino. Portanto, a loucura estava bem posta. Utilizou o gênero mais apropriado.
Visto isso, O pirralho ( ôps), o garoto, aceita o armistício. Sabe que a mãe - bem maior e robusta do que ele- não está para firulas. Assustador, contudo, para os seus olhos de fantasia, pois a mãe leva tudo muito a sério. Ela crê fundamentalmente. Então, remexe os quadris, dança, goza frenética. Felizmente, poupara os saltos do sapato, tamanho 20cms, que tentavam acompanhar o ritmo dos 'tap dancers', enquanto ajustava a câmera do monstro portátil que, muito raramente, serve também para se dizer um singelo 'alô'.
Quando consegue ajustar a posição adequada para o tiro, seu filho a faz, outra vez, perder a compostura. Ele reconhecera o poder maior do outro, mas não se conformava. O que comprova sinal de inteligência. Não ia desafiá-la sem medir algumas consequências. Temerário, imprudente, ele pula, fingindo entusiasmo verdadeiro, para uma outra poltrona, e cuja distância para tal proeza exigia perícia. Porém, o movimento foi tão brusco que a fileira inteira parecia fazer uma onda. Daquelas que torcedores nos estádios de futebol fazem. Fingindo, tão bem, felicidades.
De repente, a compostura materna adentra com o pedido de falência, e a partir daí, o filho da mãe começa a gritar por um nome. Quase uma prece. Parece que era Marina, o dito nome de menina. O público, por sua vez, espanta-se. Alvoroçados desde o início, viravam as cabeças na direção do menino e quase o fuzilam munidos de batons, leques, celulares e outros quitutes.
' Estás louco?- pergunta um semideus assombrado que passara por aquele palco, décadas atrás. 'Decidir por provocar a cólera dessas senhoras? Mães e até as  avós dessas meninas que dançam  com as suas próprias pernas, num noite de estréia? Festa de estrelas? Continuas com tanto talento para o suicídio?'- prosseguiu o fantasma antes de sumir na coxia.'
O menino silenciou. Evocou um adágio, depois um noturno, mas vislumbrou mesmo a marcha fúnebre no horizonte de três poltronas à direita. Não ousava, ele mesmo, virar a cabeça para o lado. E se um torcicolo o tomasse de jeito e ficasse congelado como nas brincadeiras de outrora: 'estátua'! Aquela senhora o mataria ali mesmo. De um modo ou de um outro modo, ela o faria. E alegaria legítima defesa da sua honra. Crime doloso. Não há nenhum porquê para não assumir tal ato. Afinal, quem mandou cutucar certas loucuras milenares?
Permaneceu quieto, imóvel. Estaria vivo? Ah! Ainda respira. É possível ver uma lágrima se destacar na multidão. A lágrima sobe e desce. Muda de figurino. Metamorfoseada de riso,  ela aplaude o derradeiro ato daquela dança. As abomináveis máquinas de tirar fotografias - dessas que fizeram ninho nos telefones onipresentes- disparam seus ataques de luzes e flashes.
Dizem que se passaram minutos. Pura ficção de algum contador dos tempos. Mas o que se sabe é que Armando Rodolfo exaltou como nunca todo o ciúme, a inveja, certo horror com amor, ressentimento, na direção da irmã Marina que, a essa altura, estava embevecida pelos tantos aplausos e gritinhos que a audiência lhes dirigia.
Foi então que o garoto DDA, DDT, Hiper-Polar ( síndrome de urso), Maníaco Depressivo, Hiperativo, ou seja, Contemporâneo, decidiu agir feito um homem precoce: virou lentamente a sua cabeça para o lado direito daquela fileira de poltronas que, massacradas pelos seus pulos, respiravam ofegantes. Uma eternidade esse vira-vira. E o mais espantoso foi o que presenciou.
Caída no chão, celular  agarrado às mãos ( feito uma reza) estava sua mãe. Àquela....Simplesmente, desmaiara.
Armando Rodolfo se aproxima. Passa a mão no seu rosto e suplica-lhe que acorde. Ela abre os olhos, confere o celular. Aflita, mas agora, contente. Gravara tudo. Até mesmo a hora que antecedeu o seu piripaque. Os dois se abraçaram num dramalhão só. 'Filho! Tenho que lhe dizer algo.- diz a jovem senhora. Antes de quase morrer, avistei um fantasminha que mora nesse teatro, faz muitos anos. E ele me disse que você seria uma excelente bailarina (ôps), bailarino.'
O menino-pirrralho-garoto aprendeu na sua primeira ida ao teatro - e com o reforço da mãe da bailarina - que não se deve confiar em qualquer assombração. E como nos relembra Fernando Pessoa... 'Apesar de sermos os avatares da estupidez passada'.

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