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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O capote da bisca

O documentário ‘Junho o mês que abalou o Brasil foi dirigido por Jorge Wainer. Seu ano, 2013. É sobre aquelas manifestações que foram tomadas pelo país. Diversos depoimentos. O mais interessante a meu ver foi o depoimento de uma pessoa que vive na periferia de São Paulo. Um bairro bastante violento. Ele começou dizendo que algumas de suas vizinhas que perderam seus filhos para balas policialescas, e que não eram de borracha, adorariam que por lá desfilassem essas tais balas de borracha. Quem sabe recicláveis?
A indignação que ele ostentava se dava mediante o jargão cantarolado por multidões sem rosto de que o gigante acordara... Na sua concepção, periferia não dorme nunca. Tem que estar de olho muito aberto, insone, o tempo todo. E ele fuzila com um sorriso no rosto e contagiante gargalhada: ‘ Nós somos covardes mesmo. Tem brasileiro que deveria ser açoitado todo fim de tarde, por fingir que não somos cúmplices de alguma forma com esse bando de ladrões que só existem, governam, para isso, ou seja, sacanear as pessoas. A gente sabe. Eles não escondem mais.  É covarde, é babaca mesmo’. Perfeito.
Diria eu que o máximo que alguns dos canalhas podem fazer é dizer que nunca viram, nunca souberam. E o pior que cola. Sei que não me foi dado o direito de desconhecer as leis, mas se um pouco de humanidade houver sabemos o que pode ultrapassar ou ficar bem aquém do que se pode chamar de alguma dose de civilidade.
O Brasil sempre fingiu resolver muitas das suas mazelas com métodos denegatórios. Afirma-se algo, foi reconhecido, mas nego. Nada mais cínico, doente. Anistia sempre foi um problema, por exemplo. Desde Rui Barbosa. O jurista, diplomata, escritor, político e que tratou do tema desde o Império. Na era Vargas, aconteceram vários movimentos para se anistiar pessoas ou instituições que tivessem cometido erros graves, desobediência civil, atos abusivos, arbitrariedades, crimes contra o estado ou cidadãos, tanto por parte da situação quanto da oposição. Por aqui, o que houve foi esquecimento. Na verdade, denegação. É esse ‘esquecimento’ que tanto Barbosa quanto o filósofo francês, Paul Ricouer, e que morreu há uma década, combatem. Ricoeur só via algum aspecto positivo num processo de anistia se esse ‘esquecimento daquilo que ocorreu’ fosse levado às últimas consequências. Um luto elaborado, analisado, rasgado. Ele usa o luto quase como um conceito. Filósofos adoram conceitos. E por certo, os responsáveis seriam devidamente chamados às falas. O único país da América do Sul que não pune os seus torturadores e algozes ainda é o Brasil. Daqui a pouco, nem os próprios protagonistas se lembrarão. Continuarão inimputáveis. Feito índio guerreiro inocente ou algum desorientado de Bagé – sem analista ou tampouco humor- a encobrir seu Garrastazu Médici local.  A fundação que levava o nome desse senhor morreu também, na também terra de Carlos Scliar. Feito rua que muda de nome sem saber.
Alegarão que estão sofrendo do mal do alemão. Não mais da ameaça soviética de então. E ele, esquadra germânica, costuma enfiar pelo menos uns sete. É o chamado capote da bisca.


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