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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Uma casa d'agente. Dan La maison.

Dentro da casa havia uma vida diferente daquela que almejara. O sonho de um menino com suas bolas de jogar para o alto, para o lado, para o gol, para o mundo, sumiu. O abandono materno e a doença de um pai, inválido das pernas, encerrou esses sonhos. Curioso. Sempre há um enredo de abandono, violência outra, miséria financeira ou social a justificar certas posturas. Ao menos no cinema. Em outras ficções, há muito mais por muito menos. Encerrou esses para embarcar noutros.
A escola que menino sonhador estuda - dá a impressão de ser pública- , e de qualidade. Porém,  boa parte dos alunos são fracos, no que diz respeito às notas obtidas. O que traz um conforto para brasileiros que se acham sempre piores do que aqueles que vieram da estranja. 'Olha lá que aluninho ruim! Coisa de francês, hein! Quem diria? Pensávamos que era tudo precário só em Português!'
Essa sensação perigosa de conforto percorre o espectador vira-lata durante a exibição do filme. Afinal, existe porcaria semelhante no continente ao Norte, no país mais desenvolvido. O que não melhora o nosso quadro interno.
Há um idealista em cena. Um professor de literatura e seus óculos que lhe conferem ar intelectual. Na verdade, o que lhe confere existência é a sua perseverança pelo que é grande, relevante. Megalomaníaco? Certamente. Ele também possui os  seus sonhos. Desejava escrever AQUELE livro. Suas ilusões pedagógicas e seus tesões literários, porém, esbarram na maioria dos seus alunos. Eles se chamam de desinteressados. Insiste em ensinar-lhes a escrever, a apreciar um bom texto, um bom romance. Autores franceses são os mais contemplados nesse caso. Mas sempre haverá vaga para um Shakespeare vizinho. O 'teacher', para um lado do canal famoso, e o 'professeur', para o outro, garante essa presença nobre na película do país de língua latina.
Oriundo daquela nação orgulhosa, onde o sol jamais dizia adeus,  em tempos de um Império que se despede pouco a pouco, William, uma espécie de superego de Hamlet, presenciaria uma mudança britânica à tempo. Apesar das muitas decadências , a ilha soberana, com sua família-rainha longeva, tem muitos atributos. E continua a  sofrer  de chuva também. Quase o ano todo.
O professor-personagem mencionado é casado com uma pretensa conhecedora de artes plásticas. A pretensão fica a cargo do desprezo que esse marido nutre pelo trabalho da sua mulher. Ele a acha pretensiosa. Não é somente pelo trabalho feito de esculturas, gravuras ou pinturas - aquela superfície plana retratando infinitudes- que lá se exibem por duas horas, a duração do filme. E sim , para sempre. Com quase tudo. Segundo ele, todos os textos sobre esses e outros trabalhos do gênero são bastante ruins. Tal e qual os textos que tenta extrair - algum sentido, alguma beleza- dos seus adolescentes alunos. Só vê qualidade na produção literária. Subestima, por exemplo, o colega que é professor de matemática na mesma escola. Tudo bem que o material com o qual trabalham é menos rico ( Seremos mortos por isso?), mas a disciplina em questão tem a sua beleza, a sua elegância particular. Talvez a Lógica tenha surgido para ampliá-la, enriquecê-la. E esse desdém todo, do erudito mestre das letras, vai lhe custar muito caro.
Quando afirma-se que o material sensível é mais rico deve-se ao fato de que ele envolve uma complexidade de elementos que não se consegue mensurar. Elementos que se transformam, que interagem o tempo todo e cujo sentido dado quase sempre está atrasado. E já é outra coisa ao se falar, ao se considerar. Não há exatidão nas suas resultantes. A mente do bichinho homem, assim como  a vida, obedece a protocolos muito singulares, com tendência à infinitudes. Sua semântica não é linear.
O professor-ator, agora, recorta algo que fora escrito num pedaço de folha. Ele está na sala de aula, seu palco diário, sorvendo provas e testes de redação. Haverá naquele pedaço de papel a mais, o milionésimo de uma vida de correções, algo para se aproveitar? A maioria dos alunos, nessa mesma sala de todos os dias do mesmo gregoriano ano, estão loucos para fugir. É sempre a mesma imagem: uma sirene - seria um bombeiro inspetor tendo chiliques pelos corredores?- a soar retumbante, e a turma virando bando, fugindo por meio de berros primevos e o professor deixando de existir de fato. Por suposto, novamente. Atravessam a porta que divide o mundo que interessa mais, situado do lado chamado 'fora da sala de aula' , daquele lado oposto e que interessa bem menos. E os anos se vão, e pouco se muda.
Quem diria que jovens franceses, com um certo nível de socialização, condição econômica - não todos, mas outros sim-, apresentem os mesmos sintomas de alguns brasileiros jovens e encontrados nos mais antigos brasileiros também: ausência de alegria em estudar ou trabalhar. Muitos profissionais a tem, felizmente. Estão, contudo, tornando-se, infelizmente, mais raros. Em diferentes campos. Independente se é a atividade mais rentável financeiramente ou não. Normalmente, não o é. E no que diz respeito à certas atividades profissionais, se aquela que se exerce não for o que há de mais rentável para quem a exerce - financeira ou pessoalmente- tornar-se-á quase inviável esse trabalho. Mediante a dificuldade, a complexidade das formações que a compõem, para exercê-la.
A arte de transmitir conhecimentos é uma delas. É das mais importantes - senão a mais importante- sendo bastante desvalorizada, desrespeitada, cinicamente tratada por nós todos. Pudera! Basta olhar para alguns dos mandatários do planetinha terráqueo! Quando não são loucos - e aí pode-se ter até uma dose de lucidez, brihantismo, ou até certa dose de cura no caso do porra-louca-, estão estupidificados pela própria função de mandatários do entulho gigante. Na atual fase de reciclagem chamamos de rede global.
O filme prossegue, continua. O jovem, cuja vida lhe ensinou a incerteza como uma das únicas certezas presentes e futuras, seduz o mestre frustrado pouco a pouco. O mestre finge que não é com ele. Que não tem nada a ver com aquilo. Daí também a sua mestria. Depois, vai se perder. E talvez a quisesse. O quê? Essa perdição sem GPS possível.
Invadem vidas outras porque suas. Vidas outras que invadem. Arriscam-se. São arriscados. Quebram a cara e ficam lindos, após aquele parágrafo de dúvidas. Aquilo houve de fato ou não? Mas tudo não é fato? A fantasia é uma realidade psíquica! Já fantasiara Dr. Freud, o Sig. Nos comunicamos? Como uma única ação de ilusões? Parece que sim. E pode se escrever um montão de coisas por conta. Chamar de literatura? Aí chamemos quem pode chamar.
Eu - que  nós não conhecemos tão bem - fala para outros. Escreve para outros , pois não é tão maluco para tentar escrever para ninguém. E aí esses tais outros balançam a cabeça para lá e para cá e nós dizemos que ele estão concordando. Isso acontece quando o movimento da cabeça vai de cima para baixo e vice-versa. E  o seu contrário, onde o oscilar com a cabeça, no sentido horizontal, diz não. Coisa que os adoráveis cães, bichinhos prediletos da patota, não sabem fazer.
Gente é gente. Não é bicho. É mais difícil, mais complexo, mais destrutivo, mais rico, mais pobre, mais escroto, mais vingativo, mais bonita.... O artigo feminino é sintoma preferencial de quem é escrito por esse texto.
O artigo feminino- já que fora evocado- também norteia, acompanha, as fantasias do jovem ator personagem, mediadas pelo seu guru professor, nesse filme francês, produzido em 2012. François Ozon, seu idealizador.
O pretenso escritor - aquele que o professor estimula, equivoca, concorda e discorda, conspira, despertando sensações intensas, novas,  a toda aula, após a aula e que divide suas ambições e angústias com a esposa ignorada-, está encantado pela mamãe do seu melhor amigo. Não se envolveu sozinho. Essa moça confusa- desculpem-nos pelo pleonasmo- corresponde. Pergunta-se mediante o fato de que até o espectador se permite equivocar: terá sido? Terá havido? Linguagem contemporânea, bastante familiar, a ser posta: terá ficado? Parece que sim. Uma cabeça que se pensa atenta ( ou teria sido uma casa?) move-se na vertical. Que significado teria esse significante? Afirmativo ou somente um cacoete dos nervos. Minha avó paterna costumava dizer que uma de suas filhas, e que se tornou educadora, sofria dos nervos. Talvez tenha, a tal filha educadora da minha vovozinha, antecipado as suas salas para embates, ou melhor, as salas e as aulas que estavam por vir.
Já o escritor-professor, aquele que desprezara o livro que ele mesmo havia escrito, quando mais jovem, visto que ainda não era  AQUELE livro, ou seja, um romance ou poema repleto de Shakespeare, Stendhal, Proust, Rimbaud, Flaubert e outros egrégios principiantes, gozava, refestelava-se através do progresso do pupilo e suas andanças descritivas. Eram 'partners' nessa construção.
Intrometendo-se na trama, por via de um Flaubert mencionado, confabula-se de novo: " Seria aquela mamãe sensual, bonita, gostosa, dissimulada pela belezura, e mamãe do melhor amigo, uma Madame Bovary do século XXI?" Não. São outros tempos, outras formas. Outra história. Segue-se....
Temos então o professor traído traindo. O roteiro não é novidade. Aluno dileto-odiado. Pensamento do sonho, vide Freud, e que faz parte de qualquer afeto. Ambos se arriscando. A quê? A uma boa história- mundana, tradicional- ou a um fracasso novo. Mas também se arriscam com separações, perdas, humilhações, processos e ganhos. Sim, muitos ganhos! Para o menino que quer ser homem importante, casanova juvenil - de calça curta por opção-  parece visível. Preconceitos a considerar, diríamos que tinha menos a perder. O risco, entretanto, jamais escondeu a sua face de incertezas. Seu prognóstico é imaginário ( o que não caracteriza delírio necessariamente), logo, não é impossível que ocorra. É tão somente um palpite por causa daquilo que não conseguiu apresentar uma melhor definição , pois não se consegue mapear isso tudo inteiramente. Intuição? Sim. Do quê?  De toda uma composição gigantesca, pois indica infinito, de tantas formações da ordem da sensibilidade. De quem? De quem assiste, de quem escreve, aquele que dirige filmes, aquele que ensina, o outro que faz papel de ator e muda de carne... Gente é gente. Cachorro não frequenta sessão de cinema. A não ser no colo de mandatário estúpido.
Qual o pretenso escritor que não quer escrever AQUELE livro, AQUELE texto? Qual o pensador que não quer interferir no haver através dos seus achados, das suas idéias? Qual o professor que não quer interlocuções profícuas, ricas? E cada vez mais vislumbrar um crescimento pessoal abundante dos seus pupilos, apelidados de alunos ? A sirene histérica a tocar e sendo retumbantemente desprezada ou silenciada, eventualmente, por antigos bandos que só pensam em fugir, em se esconder? Exagera-se nos advérbios? Digamos que é vício momentâneo para aquilo que no teatro burguês chamam de nó dramático. Bobagem. É feito o que se pode. O que se tem no momento ou pela vida toda.
' Dan La maison' ( Dentro da casa) é filmado aqui também. Somos nós: professor, 'voyeur', carrasco, herói, aprendiz, psicanalista, oportunista, surdo, matemático, arrogante, insolente, vagabundo, desonesto, poeta, criança, mulher, veneno, culto e fodidos +.........Não tem fim.
Um roteiro, um olhar, descobertas, um sonho. Uma  casa, pouco importa se por dentro ou por fora, d'agente.

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