Meu primeiro primo ficou grisalho e usava bigode.Estava deitado no seu último leito e o surdo do ritmista da escola de samba ressoava em algum canto ,naquele Domingo nublado,garoa à espreita,São Paulo,orgulho do Brasil, a pulsar.E eu ali a sepultar o meu primeiro primo.
Algo terrível me dizia que ele,cuja doença fora descoberta há 2 meses,não completaria o reinado de momo ,nesse 2011.Reinado que veio tarde,em Março,quase no fim de sua estação favorita.Estação favorita para o tal do carnaval,uma festa que ,muitos distraídos ,esquecem-se que é de cepa religiosa.
E eu tinha razão.Essas coisas que identificamos porque nos afeta de algum modo,até por experiência ou no pior dos casos um mero delírio, e que não sabemos bem nomear ou definir melhor as suas formas,a quem finalmente podemos dizer ....intuições.Ele está morto!E está presente ,o que chamamos de carne e osso,pois eu ainda passo a mão no seu rosto frio e nos seus cabelos ,sempre impecáveis.E é só por isso que insisto em dizer que ele permanece em carne e osso para mim,ao menos.
Seu caixão é simples justo porque foi um príncipe.Um príncipe que, tal qual algumas monarquias,recusou-se a mudar de lado,a reconhecer novos tempos,novas tecnologias,novos vínculos. Transformou as ferramentas de conhecimento ,as quais dispunha ,em crença,sacralizando-as.Elas passaram a não apertar as porcas do armário que ,na cozinha pequena e repleta de delícias,pois tornara-se um bom cozinheiro,insistia em não abrir e fechar -como se diria?-, corretamente.
Meu primo primeiro era muito religioso,católico.E eu um ateu.Ateu? Será que isso é pra valer?
Aprendi com o meu mestre que infelizmente não vivemos sem uma ideologia qualquer.Nossas metapsicologias,ou seja, nossas teorias,tais como ele enfatiza,são os nossos olhares e percepções e intuições e saberes sobre as coisas que aqui hão!Contudo,elas somente são ferramentas, isto é, a nossa visão de mundo, aquela teoria sobre algo.Aplica-se ou não.Serve ou não.E tem prazo de validade.E pode nunca funcionar.Ou porque estava errada ou porque estava certa,na hora errada.Já aconteceu muito,desde sempre, e gente maravilhosa foi parar na fogueira.'But"....fogueira não é São João?Festa Junina...
Meu primo se crismou aos 60 anos ,aliás aniversaria em Junho,e eu nem fiz a primeira comunhão ( Graças ao generoso Deus!!).
Ele me levava ao cinema na matinê ,fosse no falecido Cinema Pax,em Ipanema,quando estava de passagem nas suas incontáveis visitas ao Rio,fosse no Gazeta,Gazetão ,Gazetinha,na Avenida Paulista,no prédio da Tv Gazeta,em São Paulo.O famoso 'PlayCenter ,um parque que veio concorrer com o Tivoli Parque Carioca,os encantos de Sampa....Eram muitos os brinquedos.
Crescidos,viajamos.Jantávamos naqueles restaurantes que ele bem conhecia.Visitávamos exposições lá e aqui.Ele adorava passear no Centro Antigo da cidade maravilha.Algo que prezo muitíssimo também.De preferência sem muito calor a nos acompanhar...
Seu primeiro e derradeiro bigode grisalho me guia aos cartões postais.Sim,os cartões postais.Eles chegavam de todos os cantos do mundo,desde 1971, quando iniciou,ainda muito jovem, os seus périplos mundinho a dentro,mundinho de fora.Não havia "computers or cell phones" e eles chegavam.E a gente podia tocá-los e nos encantávamos com as suas aventuras.Viajei muito sem sair do Brasil,naqueles tempos de cartões postais do primo andarilho.E era um orgulho pra gente."Imagina! Acho que gritei para minha mãe,uma espécie de segunda mãe para ele,que o maluco está na União Soviética e a KGB pede identificação no saguão do hotel para aquele moço solitário do Brasil"!!!AhAhAhAh!!! Seria o Putnin a lhe exigir documentos?E a radiação em forma de veneno ,não lhe fora ofertada?Primo de sorte!!
E as viagens eram assim:solitárias quase sempre.Mas quando retornava,ao descrevê-las ,voltávamos a passear e a sonhar.
As perdas foram doídas e creio que não superadas.Os pais,a minha mãe que ,era sua tia querida,uma amiga que desistira de viver e aquele trabalho da vida toda.Doenças séria foram curadas,mas ....existem outras formações que esquecemos de computar.Estão recalcadas ,mas em potência.Recalque não é morte.Mas pode levar pra lá ....que não há.
Na última vez que nos vimos,foi naquela tradicional Pizzaria, nada mais Paulistano,da Pamplona,nos Jardins de Sampa.Faz dois anos e ele estava triste e cansado. Do quê?Da aposentadoria quase mortal? De tédio? De sabedoria no seio da estupidez?Daquela obra naquela cozinha?Continuava elegante e barrigudinho.E tinha um humor refinado.
Frequentador assíduo da Sala São Paulo e de seus concertos maravilhosos,comentara sobre o recital da semana passada."Ontem,disse-nos,não houve porque estamos na folia de momo".
Não haverá folia de momo hoje.Tampouco recitais.
Ao meu lado,fitando aquele rosto tão nosso ,está um Argentino, gente ótima ,que,na nossa infância,desafiara-me para um duelo.Ele,Argentino recém chegado,era arrogante.Parece até pleonasmo......Duelamos na sala da casa da tia da vida toda,ainda bem viva aos 94anos,do meu primo primeiro.Tínhamos oito anos de idade,o rapaz que falava castelhano e yo.
Meu primo se formara em Direito ,na USP.Foi um dos melhores alunos da sua turma.Era o dia da sua festa de formatura.E do meu duelo particular.
Então,antes que as digressões me atrapalhem mais ainda, relembro o Brasil-Argentina primeiro de minha vida.E eu insisto em chamá-lo de Frederico.Mas é Federico! '!Meu nome é Federico,seu agora careca!"Imaginei um "nuevo" duelo por vir.
E o meu primeiro Brasil e Argentina foi o último a lhe falar e rir,à beira da cama de um Hospital,numa cidade com nome de outro santo: dessa vez Santo André.Tornaram-se bons amigos.E parece que com o tal Santo também.Fora diplomata na alma e havia se crismado,há pouco tempo.Dizem que apreciam esses gestos, lá no reino deles.
Inicio agora o meu pranto derradeiro à memória do meu primo primeiro,primeiro primo.
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