Quando certos colegas de turma decidiram convocar para uma guerra outros colegas da mesma turma, o plano já estava traçado. A porta da sala de aula, utilizada para estudos complementares, estava aberta e o futuro jornalista de um importante canal televisivo - ele supunha que seria matemático devido ao êxito em tantas avaliações anteriores- e com quem compartilhava naquela tarde árida, seca, a angústia dos números e sua magia particular, dizia em tom conciliatório , quase uma súplica, naquele diálogo, quase monossilábico : " Não deveríamos nos preocupar pois acho que vai dar certo. Essa última prova não deverá ser tão difícil quanto os testes anteriores. Ao menos espero".
A prova em questão seria o derradeiro teste de matemática, de química e outras matérias daquele fim de ano. E seria o último ano naquela velha escola em sua nova sede.
Ali, todos os envolvidos nessa trama estudaram por alguns bons anos. Desde o colégio em sua sede antiga até essa recém inaugurada. E ela era completamente diferente da primeira escola, que esse que vos escreve havia estudado,na antiga capital do país.
Esse primeiro colégio assustadoramente carregava nome de história infantil vinda da estranja. Continuo a vociferar, e existem testemunhas fidedignas, apesar de algumas não estarem mais vivas, que fui preso político ( Anos de chumbo. Anos 70)naquele badalado insituto de ensino da zona sul carioca. Não gostava tampouco daquilo.
O cenário contemplava crianças vestidas feito anãs com suas meias tres-quartos. Hino Nacional Brasileiro cantado sob o calor microondas de um verão que se estende por meses a fio- na época não havia essa prótese, mas podemos bem imaginar- , e sua duas diretoras que fingiam não gostar do que gostavam de fato. Eram moralistas extemistas. Logo, tudo era meio falso. A propaganda educacional, social, declamada se distanciava muito da experimentação. Passados quase duas décadas do seu fim, a herança ainda traz problemas para dezenas de herdeiros. Todos acochambrados pela 'titia' F.D.P que vinha a ser a diretora e fundadora do pretensioso sanatório infantil.
A escola- que receberá o nome de segunda- ficava num terreno bem mais amplo e numa outra cidade, bem distante da primeira, outro planeta na verdade, no planalto central do Brasil. Sendo a sua capital. Oriunda de um delírio. E o que não o é? Era mais simples, menos exuberante, a tal escola segunda. E também não havia aquele desfile esnobe de carrões importados circulando pelas ruas do bairro cujo nome se origina de palavra indígena, à sua porta, na hora da despedida. Configurava-se então o término de mais um dia. Ufa! Alívio para quase todos.
Em compensação havia, na escola do planalto central, o tal uniforme obrigatório. Pavoroso! Tínhamos vergonha daquilo. Jamais apreciei ficar fantasiado como todos os outros. Se não fossem aquelas saias - recordemos não menos delirantemente das pernas daquele mulherão de 12 anos de idade, a Sandra, a desfilar por entre árvores do cerrado urbano-, haveria dificuldade na distinção entre quem eram os meninos e onde desfilavam as meninas. A não ser pelo mulherão. Tudo bem que o nome Sandra já causava atrações fatais, fazia tempo, já que fora uma das musas televisivas, cinematográficas à época. Seu nome: Sandra Bréa. Lembram-se dela? E depois veio a Farrah Fawcett. Uma musa pantera importada e aquela outra fulana ......também. Havia excesso de boas sugestões, reconhecemos.
Então a Sandra era a tal. A cereja do bolo. Mais velha e estudando numa turma mais adiantada. E tinha aqueles cabelos castanhos e os olhos negros. Tais poderes bastavam para Sandra não nos olhar diretamente. Os meninos sentiam-se atravessados por aquele não olhar e se perguntavam se aquela Sandra teria uma espécie de sintoma autista especial? Tinha-se escutado a respeito em programa televisivo. Alguns, contudo, ao tentar defendê-la garantiam que ela era estrábica. A princípio achava-se que isso fosse algo grave, talvez uma formação de outra galáxia. Felizmente, o sintoma era menos sério. Os olhos da nossa musa juvenil tinham dificuldades com as paralelas. Tão somente assim. Um seguia para fora o outro puxava para dentro. Um mais embaixo e o outro olho mais acima. Nada porém que atrapalhasse a beleza de nossa ex-colega. E nós não suplicávamos por um olhar assim tão contundente, tão amoroso! Bastava uma espiadinha. Estilo Minas Gerais. Terra do adorável e saudoso presidente brasileiro que fez de um sonho um ataque histérico.
Não cedia, a nossa Sandra.Tinha convicções singulares, a tal moça. Postura ereta, reboladinha de quadril - o movimento feminista mais bem sucedido, segundo o não menos saudoso, Millôr Fernandes- a espalhar veneno para tudo quanto é lado. Fazia parte do seu espetáculo juvenil.
Um dos pontos característicos - aplausíveis- nessa fase adolescente é a flexibilidade irresponsável para se mudar de partido, para se trocar de musa. Já cometemos o erro em supor que isso se chama leviandade, mas não é disso que se trata. É aderência a menos. Sem obrigações ou imperativos para agir, escolher.... Portanto, essa Sandra acaba de morrer. Decretamos, sem a necessiadade de nenhuma publicação em diário oficial, o seu fim. E nada de culpa, por favor. Afinal, morreu e continua viva. Sonho maior e impossível!! Não disse que tinha singularidades específicas, a tal musa juvenil? Estão todos aqui, novamente, falando disso e por causa D'isso. Evocamos mais de 30 anos nesse momento. E parece passar ligeiro quando se rememora. Até rememorar, elaborar, concluir....Mais 30!
A vingança contra tal vestimenta, fantasia sem graça intitulada uniforme, era sujá-la ao máximo durante as peladas de futebol ou nos jogos com bolas de gude, após as aulas, no terreno baldio próximo, nessa escola segunda. E quando vencemos o primeiro campeonato de futebol que a escola organizara? Camisa da Portuguesa de São Paulo. Número nove: Enéas, o divino da Lusa. Pretensiosa arrogância fantasiada de menino. Todos eufóricos e imundos após a conquista do título inédito. E aquele sorriso que não se descreve com palavras, pois faltam as palavras diante da obviedade do gesto único, do garoto Gastão. O seu apelido, desse nosso goleiro estilo holandês- era loiro de olhos claros- que virou nome próprio, na direção minha como se um milagre houvesse ocorrido. E havia ocorrido essa magia sim. Milagre para alguns.
O time fora montado fazia pouquíssimo tempo e as camisas eram improvisadas. As mães ajudaram com a costura. Detalhes de mãe. Imaginem se no colégio esnobe (aquele de 300 anos atrás. Sim, agora já são 300!), produtor de mauricinhos, permitiria tal coisa! Isso era algo menor, ou seja: virar gente. Ao menos se teve o cuidado de colocar, no lado esquerdo do peito, o escudo certo, pois a cor da camisa também não era fidedigna à agremiação lusitana. Ao invés do grená a camisola- camiseta em Lisboeta- tinha uma coloração vermelha mais para o colorado dos pampas ou o ameriquinha carioca. Qual a razão para isso? Ao invés do estrabismo sofreríamos de um daltonismo não diagnosticado na equipe? Teria sido um ato de rebeldia contra o uniforme , cuja calça era - essa sim- meio grená? Ou seria ato contrário à direção e suas ameaçãs; a disciplina que ensina cálculos e apresenta algoritmos específicos ou o hino mal cantado; aquele sol que não se manca e aquele anão semelhante no vestir-se; o 'déficit' de paralelismo da ex-musa esquecida e desrecalcada hoje? Tantas possibilidades....
Enquanto confabulamos, aquele colega suposto matemático e o esnobado daqui, o tal bom malandro apresenta os seus planos para , quem sabe, o teste final funcionar bem. Afinal, o bom malandro é aquele que faz uma série progredir. Faz seriação. Ainda que composta por traquinagens. Nesse caso, o bom malandro era um rapaz simpático, carismático e péssimo aluno com as matérias oficiais. Seu nome não será revelado por razões de puro esquecimento. Avatares do tempo. O que não quer dizer que ele fosse burro ou algo semelhante. Estudava outras disciplinas que o colégio e o seu fluxograma caduco não contemplavam como sendo da ordem do saber, do conhecimento. Teatro, música, artes plásticas...Eram alguns dos saberes deixados de lado. Por isso que fingem ignorar a estupidez da formação que oferecemos às crianças.
Muito pelo contrário nesse caso visto que o tal rapaz ardiloso era bom interlocutor e lúcido. Sacaneava na verdade um padrasto que o sacaneava. E no fim, ele conseguia o alívio de ser aprovado. O padrasto custeava as despesas do seu estudo em troca de acordos nada familiares. Porém, nesse ano específico, as coisas engataram a marcha ré. Calculara de forma equivocada a sua média anual. E esses são alguns dos problemas com os tais cálculos errados. Quase se arrebenta antes do prazo derradeiro. E o prazo último se aproximava ardilosa e perigosamente.
'Então façamos assim. Há um espaço entre a janela x e o seu término, enquanto formação janela, e que pode ser transposto por alguém com o meu biotipo. O biotipo em questão mostrava um ser longilíneo, esbelto, meia altura. Por término de janela entende-se que havia um buraco no caminho e não somente pedras. Talvez tivesse sido quebrada a tal janela, por um outro astuto? Não. Era erro de projeto mesmo.
O malandro colega passara algum tempo calculando, especulando sobre isso. Se tivesse perdido o mesmo tempo com outros cálculos talvez estivesse em situação menos desesperadora do ponto de vista escolar e suas exigências mínimas. E olha a gente por aqui fazendo moralismos, feito as duas senhoras diretoras da primeira escola. O que temos a ver , haver, com o que o fulano faz com as suas médias, com o seus tesões? Mas que era um adepto fidedigno da sinecura, isso era incontestável! Aquele tipo de trabalho em que não se tem esforço algum para se conseguir ganhos.Um sintoma característico do nosso Brasil onde geralmente - não são todos- não há muito tesão pelo trabalho. Não há alegria nisso. Algumas atividades são invejadas justamente por isso. Seus praticantes adoram o que fazem mesmo que não sejam as atividades mais rentáveis do ponto de vista financeiro.
O sinecurista - mau aluno para sempre- tem como objetivo faturar sem o menor esforço. No linguajar vulgar, e isso não é ofensa, não há adjetivação em questão, já que foi substantivado faz tempo, chama-se vagabundagem.
Mudou-se de sala para não despertar curiosidades inconvenientes. O esbelto bom malandro continuou com a sua explanação. O plano tinha início.
À noite, quase madrugada, iria-se ao local onde um buraco poderia salvar algumas almas estudantis. Através dele, um malandro do bem passaria. Para dentro desse buraco havia uma estante enorme e uns equipamentos avançados para época, Época de analogias triunfantes. Digitalizações não eram tão bem vindas em certos setores. E para essa ocasião os sons ao redor, capacidade analógica de se captar, ouvir todos os sons possíveis num ambiente, eram providenciais já que se o responsável pela segurança resolvesse abordar certos buracos e suas vicissitudes haveria problema e dos grandes para esse bando de aventureiros atrevidos.
Naquela estante, naquele poço com fundo, estavam guardados feito tesouro todos os testes de fim de ano, daquela escola segunda. O canalha, quer dizer, o malandro-chefe, já tinha sacado tudo!
'Nada de pegar as provas todas. Só as que necessitar'.- advertiu.
'Mas e vossa senhoria? Todo alquebrado por disciplinas que despreza? Vai amarelar?' - alguém o questionou.
'Se eu pegasse muitas provas, eles - os malvados diretores- descobririam. Sou quase repetente, mas não sou burro! E quem estiver insatisfeito não precisa aderir!'- esbravejou.
Adesão unânime. Primeiro passo: conseguir as provas. Segundo passo: distribuí-las entre os colegas que fossem mais hábeis nas respectivas disciplinas. Somavam quatro essa gente. Todos, agora, malandros. A distribuição era para que as questões -subjetivas e bastante difíceis- fossem resolvidas e estudadas previamente. Depois, se tudo saísse a contento, poderíamos correr para o abraço sedutor das férias.
Ah! E o segurança? Era um bêbado adorável. Cachaceiro da melhor estirpe. Nunca o vi.
Então, malandros generosos, uma garrafa novinha da cachaça envelhecida no laboratório de análises clínicas mais próximo, a lhe ofertar. Misturado para harmonizar com o sono profundo, o chefe-astuto-inimigo, do padrasto-milico, dissolveu um comprimidinho, denominado de sonífero, no interior da con-sagrada bebida. Sua mãe o utilizava frequentemente, segundo sua versão. E ainda respirava sem ajuda de aparelhos. Talvez para aturar ou torturar o padrasto. Começo a simpatizar com esse homem que fora difamado durante os dias que antecederam o grande dia. Padrasto e madrasta mereciam melhor tratamento a priori. Garantira portanto, chefe-branco, que a dosagem do veneno ( menos libidinoso do que o de Sandra, aquele mulherão envelhecida por 12 anos, feito Whisky de gente grande) era mínima, mas o suficiente para deixá-lo fora de ação pelo tempo que necessitávamos para O Atentado.
Dia D. Carro a postos. Família a dormir e a primeira irregularidade. Não havia carteira de habilitação, mas sabia-se dirigir direito. Nada de bebida alcoólica. Álcool só para o prezado vigia permanecer fora de combate. Roupas escuras, toucas, luvas. Cenografia de ocasião. Chegando ao local do crime, de repente, um porrete surge no campo de visão. "Violência não!- conclamou-se com o destemido que o carregava". 'Só em última instância'-foi feito o acordo. Sabido que a última instância é vizinha suposta do impossível que não há, e que não tem vizinhança possível, alívio na madrugada. Respiramos. O homem-vigia bebeu um sono profundo. Foi então que entramos todos buraco a dentro. Uma espécie de curra, politicamente correta e sem gravadores camuflados ou diário oficial a lhe dedurar. Nada de sangramento ou secreções. O paraíso se apresentou na madrugada fresca com cheiro de mato do campo molhado da garoa da noite para aqueles jovens malandros, ex-virgens, em ato de delito. Rouba-se no jogo? Quais seriam as regras se não sabemos de todas? Podemos desconhecer as regras? Há rebeldia possível através de um buraco que há.
As férias iniciaram juntamente com os pesadelos culposos de quem não se manca. Se ainda persistem sentimentos culposos, culpado se é.
"E aí? Sonhando feito vigia de porre? Ou teria algum algoritmo lhe avessado as idéias?" -uma voz relembrou.
A sala fechou sua porta. O Buraco não. Transpareceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário