Maria Rosa era uma menina com seus cabelos loiros e
ondulados. Morava na Rua Nascimento e Silva, numa casa com certo quintal
gigante para os passos dos pequenos. Jogamos bola uma tarde. Era aniversário de
seu irmão, o Jorge.
Jorge tinha os seus cabelos negros e era bem bonito. Aliás,
a família toda era bonita. Não há lembrança de seus pais, mas eram bonitos
também. Havia quem garantisse isso. Existia, afinal, a inveja de sempre.
Fotogenia é uma forma de poder.
Fui apaixonado por Maria Rosa durante um tempo. Paixões
foram feitas, felizmente, para passar. Feito modismo. Numa noite, cercada de
anseios pela chegada dos pais, que estavam a viajar para o estrangeiro, ganhei um
jogo com bonecos de plástico. Um jogo de futebol que meu pai trouxera da
Argentina. ‘Uno regalo para El pibe’. Os
bonecos plastificados vestiam camisetas do River Plate e do Boca Juniors. Essas
duas instituições são os dois principais times de futebol da Argentina. Adorava
aquele jogo. Ao longo da caixa de papelão que o embrulhara, desde Buenos Aires
até o Rio de Janeiro, marquei uns gols sob a forma de escrita infantil. Um
tento amoroso. Declarei-me à Maria Rosa. Escrevi seu nome, desde a arquibancada
imaginária à dureza das gerais. Jamais mostrei a ela. Sim, pois a mocinha tinha
um namorado à época.
O nome dele? Esqueci. Engraçado, não? Porém, não me esqueci
do seu rosto bonito e dos seus olhos azuis turquesa.
Ele era mais
experiente do que eu nesses temas amorosos. Tinha nove anos. A criatura aqui
tinha somente oito. Isso fazia muita
diferença aos belos olhos da menina. Creio que trazia algum tipo de segurança.
Ainda que os maldosos colegas assegurassem que essa tal segurança era fruto da
grana que a família do bonitão esbanjava.Eu não tinha essa grana. Um tio bem
mais experiente, já que tinha uns 40, e essa marca para um pequeno indicava
algo de eterno, garantia que a grana remexia com nossas vísceras. Curioso, pois
acreditava que o coração fosse um músculo! De repente, as vísceras são os tais
sentimentos. Sentimentos esses que supomos não possuir suas razões. Apesar de certo
senhor – bem mais experiente, feito estátua, conclamado Pascal –, ter garantido
que sim. O tal músculo as tinha. Tempos depois, tempos de agora, alguém ainda
mais experiente me garantiu que a razão também tem lá os seus corações. Os
sentimentos, portanto, expressam inteligências. São tão racionais quanto
qualquer ideia, qualquer conceito, qualquer estratégia. E a formação cobiçada
passa a considerar a outra formação que a cobiça...
Maria Rosa desconfiou que eu lhe fazia a corte. Comentava insistentemente
com a irmã do meu melhor amigo, O Guilherme. Essa irmã falou para mim. E eu
conspirei para que nos encontrássemos no fim de semana seguinte. Quem sabe um
“drink” de.. “Milk-shake” no Gordon ou no Bob’s? Aqui mesmo em Ipanema? Quem
sabe nos próximos finais de semana todos? Até completarmos o tempo que nos
separa desse texto? Vejam quanta experiência a trocar?
A irmã do tal amigo, por sua vez, dissera que ela viria
passar o fim de semana seguinte na sua casa. Naquele tempo era assim: a gente
andava uns quatro quarteirões no bairro em que se morava e passava o fim de
semana na casa de um amigo. Eu adorava esses fins de semana! Os apartamentos
dos amigos eram enormes e podíamos fazer uma arruaça despretensiosa! Sinto até
hoje o cheiro daquela arruaça, naqueles lugares dos amigos. A casa do amigo era
sempre uma novidade familiar e intrigante. E as pessoas eram diferentes e tão
iguais. Mãe e irmã de amigo são assexuadas para os pequenos moralistas. Fiéis
pela amizade. Elas desfilavam com camisolas e badulaques pela casa grande e a
gente fingindo que não percebia. Era o buraco da fechadura na cara de pau da
criança taradinha.
Na Rua Prudente de Moraes existiam vários apartamentos
amigos. Uma espécie de latifúndio urbano sem escritura. Seria essa uma das
razões do interesse pela política e pela loucura? Não custa recordar que Prudente
foi o nosso primeiro presidente civil e que morreu doidinho, coitadinho! Creio
até que não completara o mandato. Mandatos presidenciais podem ser muito
perigosos para organismos mais suscetíveis.
O Brasil, essa multiplicidade de singularidades marcantes,
atravessou uma tragédia, um pouco mais recente, do que a de Prudente. No início
dos anos 80, a morte – que não há enquanto experiência, vivência, formação... -,
chegou para uma denominada Nova República. República tão velha. Apodreceu antes
de nascer. E o porquê? Era uma farsa. Muito amadorismo reunido e uma cambada de
calhordas, velhacos republicanos, à espreita.
Nos anos oitenta, eu não sabia mais de Maria Rosa. Nem tão
pouco das vísceras. Vai se tornando uma ignorância falante à medida desse tempo
ilusório, iludido. O fim de semana, contudo, existiu.
Ficamos no quarto ao lado do quarto das meninas. Quarto das
meninas é quase uma catacrese! O quarto era quase igual: na metragem, no
significante quarto, naquela janela que mostrava Maria Rosa passando toda
linda, correndo, rindo, feliz. Então não tinha que ser quarto das meninas! Era
só mais um quarto com as meninas!! Ah! O porquê de quarto para meninas? Porque os
babacas, perdão, ‘nosotros’ supomos que cor de rosa era cor de menina e para as
meninas! O machinho do azul cabe aos donzelos! E isso é sério, pois corre o
mundo, há séculos! É uma verdade quase que absoluta na cabeça doente de cada
dia. Esquece-se que é uma cor como tantas. E que anatomias corporais não
determinam cores, escolhas de parceiros semelhantes, necessariamente. São
opções possíveis, disponíveis, como tantas outras. Múltiplos, singulares, de
uma espécie única. Com uma identidade absoluta. Tudo bem que era um outro
quarto...mas para qualquer Um.
Maria Rosa não queria saber muito dos meninos que brincavam
de jogar botões. Um outro jogo de futebol, com botões desnudos, numa mesa que
imita um campo de futebol. Uma pena, pois eu jogava muito bem! Fui campeão e
tudo. Fazíamos um outro teatro – outros personagens- com os botões que se
tornavam jogadores. Catacrese futebolística? Não. Brincadeira da boa. Pra lá de
bom! Houve troca entre os competidores. Trocávamos o Zico pelo Rivelino, por
exemplo. Quando envolvia operações, digamos assim, complexas, apostava-se até o
lugar privilegiado para espiar a outra rosa, nome desconhecido, que trocava de
roupa generosamente, no prédio em frente. A generosidade era porque ela se
exibia para valer! Sabia que estávamos por perto.
Maria também. Só que com laços infantilóides, blusinhas
comedidas, roupinhas despretensiosas. Ainda bem! Caso contrário seria uma anã.
E não aquela certa rosa.
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