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domingo, 11 de abril de 2010

Acomodações e conforto.

Nada como um temporal para nos tirar o chão.
Acostumados a uma certa previsibilidade desejada , a uma simetria ilusória, os nossos hábitos narcisicamente bem mantidos desabam quando a chamada natureza - que sempre foi afeita à chiliques - balança as suas estruturas, as suas fundações.
O que se viu por toda a cidade do Rio de Janeiro , em Niterói e outras cidades da região metropolitana ,nessa semana que se encerra - já são 229 mortos- ,foi o pânico instalado ou o cinismo, denegatoriamente sustentado , por parte daqueles que supõem que a cidade que lhes atinge, a cidade que lhes habitam ou são, restringe-se ao seu condomínio,ao seu bairro,ao quiosque em frente sob a brisa do mar de porre.Ela tem dimensões bem maiores e humores e horrores também.
No caos de uma quinta-feira sinistra,deslocava-me pelas ruas que voltavam a se banhar despudoradamente ,sem se incomodar com as testemunhas aflitas que lhes fazem companhia diária.
Aquele tráfego não deslanchava ,mas algo estranho ,pouco usual, ocorria.Havia uma solidariedade perdida no tempo.De repente,mediante férias coletivas do poder público que,deveria se apresentar justamente em estados de exceção , os habitantes tomam as regras nas mãos.Motoristas deselegantemente molhados passam a orquestrar o tráfego.O som do apito vem de dentro dos seus atos.Eles gesticulam e modulam os sons dos motores.Acalmam os mais afoitos.
Qualquer carioca tem com enchentes algum parentesco dantesco.Eu mesmo nasci sob a égide das tormentas.
No verão de 1966, o número de mortos chegou a 300 e com mais de 2o mil desabrigados.Meus pais chegaram num pequeno bote à Clínica Santa Lúcia,em Botafogo, pois não era possível acessá-la de carro ,táxi ou qualquer outro veículo gravítico.Tinha que ser uma formação anfíbio para ajudar o boneco aqui nascer lá. Quem diria : a minha primeira parteira foi um bote.
Na mesma quinta-feira ,ainda não virei a folha, eu liderava um bando de aflitos em direção a um lugar _quem poderia saber ao certo qual ?-,um pouco mais seco. Dirigia na frente e suspeitava daquela gentileza toda que os meus vizinhos motorizados dedicavam a mim.O que seria aquilo? Ingenuamente fiz a suposição de que estavam tão aturdidos que paralisavam-se a si próprios.Não é impossível tal suposição ...Só que ,burro velho de outras cheias, comecei a realizar algumas pequenas manobras,deslizando feito patinador artístico e percebi então que eu era o mais novo boi de piranha ou isca, do mercado ,na noite dessa mesma quinta-feira na cidade ex-maravilha.
Eles só estavam aguardando pela minha falha,pela minha falência motora para decidir se atacavam também aquelas poças convidativas a mergulhos incertos.Nada mais normal. Afinal, sobrevivemos às custas das nossas estratégias. E é assim que foi e assim é que será.Ao menos nos próximos 100 anos.....

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