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domingo, 8 de novembro de 2009

Coisa de menino

O Maracanã encolheu ou fui eu que cresci?
Lembro-me da primeira vez que lá estive.Uma quarta- feira à noite do ano de 1974. Meu pai ainda era um herói desconhecido para mim.Trabalhava doze, treze horas por dia. Chegava tarde em casa , até porque o local do trabalho ficava bem distante.Além disso , tinha estado bem doente , o meu pai, alguns anos antes, o que o obrigara a uma licença médica prolongada. Quase morrera.Uma infecção no intestino delgado o deixara à beira do fim.Na época , o médico que o curara, já é falecido, tinha retornado há pouco tempo da Inglaterra e se tornara um especialista nesse mal. Era um Gentleman, mas sobretudo um excelente profissional.
De intestino novo, ele prometera levar então o filho menino ao estádio. Hoje, vislumbro que tamanho esforço - pois sempre estava cansado para tais empreitadas- era resultado da ameaça vascaína que rondava a minha casa. Os irmãos , os sobrinhos e até a nossa querida e saudosa empregada são torcedores fervorosos do clube português.Ele não quis arriscar tanto e por isso decidiu carregar o filhote para um vício novo.Vamos desbravar o meu estádio esportivo do mundo!O nosso coliseu!!
Banho tomado, dever escolar feito, jantar servido pela memorável Julieta "forno e fogão"- como era reconhecida- e lá estava o moleque preparado para entrar em campo.
O velho pai então me tomou nas mãos e descemos para rua. O táxi que passa é um vermelho Volkswagen com 4 portas. Bastante popular no Rio , nos anos 70. Meu pai não gostava de levar o próprio carro para o estádio nessa época. Coisa que mudaria uma década depois, onde o estacionamento da Universidade Do Estado do Rio , Uerj, pela proximidade com o estádio,tornara-se uma espécie de parque de diversão para peladeiros amadores.Nos tempos atuais, a reitoria da Universidade acabou com essa esculhambação.
O certo é que fomos aos estádio. O jogo era válido pelo campeonato carioca e o adversário tinha nome de santo:São Cristóvão. Meu pai também se chama Cristóvão , mas de santo nada tem.
O Clube de Regatas do Flamengo , nosso clube, é favorito. O Maracanã é gigantesco para minhas pernas pequeninas e meu olho deslumbrado. Tinha 8 anos de idade. O estádio contava 24 anos à essa altura.
Do lado oposto ao escolhido pelo velho para sentarmos havia uma bandinha que tocava incessantemente. Chamava-se Charanga do Flamengo e fora fundada décadas antes por um senhor , que nesse momento torna-se mais importante para mim do que o Presidente da República, chamado Jaime de Carvalho.A bandinha é muito boa e empurra torcedores e jogadores para algum lugar.Pode parecer loucura, digamos uma lesão cerebral, mas recordo o número de pessoas no estádio, naquela noite imortal: aproximadamente 30 mil pessoas. Sim, 30 mil a contemplar Flamengo contra o São-cri-cri. Vídeo cassete, Dvd, televisão a cabo, e outras tecnologias eram inimagináveis nesse momento. Se por lá aparecessem, uma revolta dar-se-ia por certo.
Vencemos por 2xo. Um dos gols foi marcado por um gringo, argentino boa praça, coisa rara,que atuava com a camisa nove: Doval era o seu nome. Doval, já falecido após excessos na madrugada portenha, era muito popular entre as mulheres,pois era "hombre muy guapo".Loiro de olhos claros, tinha talento e boça.Zico , O Arthur Antunes, nosso maior craque, estava começando.Eram bons parceiros.
Amigos lhes confesso que ainda tenho dúvidas se retornei ou não para casa. Creio que por lá permaneci. Não me recordo do caminho de volta.Fiquei refestelado ali naquela arquibancada de cimento escuro e sujo, encantado. Será que morri?Não.Contei para os meus amigos da escola o que havia se passado.Gesticulei muito ao imitar os gestos dos artistas da pelada. Só me contive porque percebi que um colega,ouvinte atento das minhas bizarrices, tinha tristeza nos olhos. E aí me lembrei: ele não tem mais o pai. Morrera alguns poucos meses antes da minha pantomima.Não poderia levá-lo mais aos jogos do seu Botafogo.Na verdade, jamais o levou.
Aquilo entristeceu-me e me deixou confuso, afinal pai não morre e o dele havia morrido.Ninguém me contara a respeito,ou seja, que os tais pais e as tais mães morriam!!!Mentiram para mim todo o tempo!E ainda havia um outro que comandava o jogo todo. Seria aquele juiz com o apito na boca arbitrando a transa toda?E o meu velho quase morrera por causa dos intestinos....
Durante anos, perturbei ao máximo o meu pai para que ele me levasse, também ao máximo, aos jogos de futebol. Era uma garantia infantil de que ele estaria vivo, ao meu lado. E uma vingança perversa também, já que o menino sem pai e sem jogo, era o melhor aluno de Matemática da escola e nessa época o seu time tinha o mau hábito de ganhar mais vezes do meu. A sacanagem começa desde cedinho.
Hoje, além do meu velho que, não liga mais pra jogo algum, há o pequeno rádio de pilha que confirma para mim que o estádio continua o mesmo de sempre, com as dimensões dos meus sonhos e atropelos. Ali é lugar para encantamento de menino.O resto é enganação de quem pensa que cresceu.

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