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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Dr.Gachet que observa

Conheci Sergio através de um amigo em comum.Era dia bonito.Havia sol entre nuvens preguiçosas.
Sergio era colega de colégio de alguns conhecidos meus.
Tinha cara e trejeito de gringo.Era uma espécie de quase gringo.
Sua mãe nascera na Holanda e ele por lá passara diversas vezes.
A Holanda para mim, a essa época, era tão somente um sonho de Van Gogh,Rembrandt...e Sergio tornara-se uma curiosidade.Era extremamente educado,inteligente - um dos melhores alunos de toda a faculdade de Engenharia ,na Universidade em que estudava - e culto.Sua mãe tinha vocação para o canto lírico e ele a acompanhava nas empreitadas dos chamados recitais.
O vínculo se fez.Encontrávamos vez e quase sempre para uma conversa e uma dita farra.A farra era mais um tesão meu do que propriamente dele.Sergio era um gentleman.Gentlemen não fazem farra.Podem participar de orgias bacanas ,mas farra....Tenho até um primo que é assim.Ele nunca fez parte disso.Ensaiou uns passos de dança,umas aulas para fazer cabrocha não desistir dele tão cedo no baile,mas não se enquadrava.
Farrear tem esse aspecto cafajeste.Há aquela bebedeira toda ,aquela falta de respeito pela senhorita da mesa ao lado -por mais que a dita cuja senhorita tente se fazer não merecedora dessa consideração respeitosa moralista-; por fim há aquele estado de alegria que retorna das profundezas rasas dos nossos recalques.E é mágico.Feito meu sonho de Rembrandt com Van Gogh.
Noutro dia bonito,chovia bastante, e ao retornar de um banho a mais, no oceano que inunda a nossa vista daqui,recebo estarrecido a notícia de que havia morrido,num acidente de carro,o irmão caçula do meu amigo quase sempre estrangeiro.Irmãos caçulas podem morrer?Então eu,caçula para sempre,posso morrer?
Não havia me passado pela vida que caçulas morriam. Seria hipócrita crer que desde então acompanhava o velho Freud em sua certeza de que não há inscrição de morte no inconsciente.A criança então diz ao parente inábil:"Sei que papai morreu,mas quando é que ele volta para casa?'.Pode ser só mais um exemplo,cunhado pelo mestre,já que precisamos de peras e maçãs para entender certas articulações.
A explicação mais contemporânea dada por outro mestre da Psicanálise,MD.Magno,é que a morte não há.Não há representação possível,nem tampouco experiência de morte.Donde vida eterna.
Sim.Arrogantes juvenis que são sábios na sua certeza de que quem morre são os outros.Resta,entretanto, a lembrança possível de que toda carne tem fraquezas indeléveis.
Telefone desligado,era hora de partir em direção à casa do amigo.Não fui sozinho.Tive a companhia de outro amigo,um médico recém formado.Nunca se sabe o que virá.
A cena e a consternação eram brutais,afinal o rapaz morto tinha vinte e poucos anos.Bonito,estudioso,alta burguesia,roteiro perfeito.Vida maravilhosa.Morrera afogado ao bater com a cabeça e desmaiar,após o acidente com o carro. A namorada tentou salvá-lo,mas ele era pesado,forte feito um touro.Não conseguiu puxá-lo para fora do automóvel.Era uma noite de primavera verão.Novembro,'Saturday Night Life'.
A cidade maravilha -alcunha do Rio muito mais do que um Janeiro- vivia as suas primeiras eleições municipais em décadas.Houve fraude.No ano seguinte,recadastramento de todos os votantes e votados por conta disso.Livrei-me da multa ,pois não aparecera para cumprir obrigação eleitoral enquanto mesário.Sim,mesário.Aquele funcionário público que fica sentadinho conferindo títulos eleitorais dos outros.Aqueles títulos sem fotos.Agora,parece que já há.Não sei ao certo.Uma foto de título pode ser igual ao obituário da seção policial.
Meu amigo que, teve um irmão caçula morto, jamais se recuperou.Por certo,não fora somente isso que provocou todos os sintomas dos quais ele,passados vinte e seis anos do desastre,continua refém.
Mudou-se com a família, de endereço, incontáveis vezes.Aquela instabilidade me gerava certa desconfiança de que não fora o único a ser golpeado profundamente.
Jamais conseguiu dar sequência à profissão escolhida.Vive,faz uns 15 anos,na Holanda materna.Perto da capital,numa pequena cidade.
Sempre acho que qualquer cidade fica perto da capital,por lá,na Holanda.Mania de quem nasceu em terras continentais e o resto do mundo fica diminuto.Hoje,Sergio mora sozinho.Já está assim desde sempre.
Lá,tem uma vida.Trabalha onde se trata.Recebe ajuda previdenciária de um governo de país civilizado.Aqui,só encontrou linchamento."Imagine.Ele disse numa entrevista para um emprego que avistara um duende,ao sair do avião"!!. Perguntei então ao racionalista impoluto, que dissera o que está escrito acima, o seguinte: " E você não é aquele que crê em Jesus?Que reza para ele?Que conversa com ele assim.......repleto de transcendências?" Qual é a diferença da qualidade do delírio?É só uma questão política?Quem pode garantir?
Ao me despedir ,naquele dia belo ,chuva/sol-,e deixá-lo partir com a sua saudade,avistei, no andar segundo, a sua mãe que escutava algo feito canto.Ou seria um pranto?
Van Gogh e a sua turma sempre a confundir.Dr Gachet que nos observa.

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