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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Saudosismos e temores.

"Existem duas coisas que me incomodam aqui."
Dito isso,a senhora de diversas idades,pergunta-me ,ou melhor, responde de primeira: "Todo mundo por aqui se acha muito importante".
Tudo bem.Esse seria o incômodo primeiro,mas não é privilégio da Capital Federal, a chamada Brasília, do tão aclamado Brasil
Nada mais engraçadinho,por exemplo, do que cariocas - sou mais um - e seu perfume maresia cheio de boça, a caminho do mar Zona Sul- olha que coisa mais linda -, e o seu super-ego paulistano cheio da grana, inveja não declarada, a incomodar balneários menos pródigos.
Todo mundo contraria o poema em linha reta de Fernando Pessoa.Jamais conhecemos alguém que não fosse o máximo.A começar por nós mesmos.
Noutro dia,exemplaridade colhida de um programa televisivo, o entrevistado-célebre (isso é um substantivo mais que abstrato) teria dito: 'O meu defeito maior é que sou perfeccionista'. Mais uma gracinha...O que a peça,não rara, esqueceu de dizer foi que a sua tolice maior é querer se tornar algo que não é possível.Deixou a sua escrotidão cotidiana no colo do vizinho defeituoso.Uma pessoa comum.
O outro comichão que apoquenta a vida seria o fato de que ,apesar de tão jovem,a Capital Federal apresenta os mesmos vícios equivocados que levaram à decadência ,econômica,social,da antiga Capital Federal do Brasil ,o Rio mais belo de um Janeiro.
A desmobilização ,não confundir chiliques , passeatas e/ou vídeos clandestinos bisbilhoteiros,da sociedade civil para com as questões locais essa sim é protagonista de uma ressentida pasmaceira.Por lá,assim como por aqui nos anos 50/60, o poder executivo federal era o centro dos interesses.
Juscelino,Presidente Bossa Nova,temia que as instâncias e suas respectivas obrigações se misturassem, somados ao crescimento populacional e a possibilidade de manifestações cada vez mais contundentes e violentas a advir.É óbvio que houve sonho e delírio.É óbvio que quase todas as capitais do mundo civilizado não ficam em cidades portuárias,por razões de segurança , e também aquela ajuda financeira proveniente de empreiteiras destemidas a sonhar com um gigante adormecido a bem encalhar.
Brasília foi construída por mentes brilhantes,mas nunca um planejamento urbano serviu tanto para regimes de caserna como aquele.
E disso tudo advém certa postura que se observa em parte da população,população douta,bem formada e informada, que é a negligência para com a destruição visível,talvez tão óbvia que ofusque os olhos,da cidade e do seu entorno.Por lá,já existem comunidades tão violentas quanto tantas outras existentes nos maiores centros urbanos do país.Leia-se Rio ,São Paulo,Belo Horizonte e Salvador.Além do esporte medonho,praticado por alguns jovens da alta burguesia,que é atear fogo em moradores de rua.Não importam se sejam índios ou mendigos.Devem morrer na corte feito condenados por qualquer inquisição.Uma inquisição racista e cínica.Como de costume.
É como se não houvesse poder local ou pelo menos esse poder estivesse subdito inteiramente às vontades da chamada União ou Poder Federal.Donde a ideia de federalismo no Brasil se comprometer um pouco visto que uma certa alienação às determinações do Governo Federal se impõem.
Um regime federativo exige que as suas federações tenham o mínimo de autonomia para poder se bancar.
Nos EUA as federações têm regimento próprio.Em certos Estados norte-americanos o que é considerado crime para um não o é para outro ou então tem um grau de punibilidade bem menos rigoroso.
A negligência quanto a participação e discussões realmente profícuas em torno da chamada política é semelhante ao comportamento neurótico de cada um de nós quanto aos passos dados nas nossas vidas.
Vivemos num país onde a meritocracia é instrumento raro.Ainda existe a necessidade das mediações políticas,afetivas e outras tais para se atingir certas metas.Tal qual indica a Psicanálise proposta por MD.Magno, nada mais neurótico,doentio do que essa necessidade de intermediação para se negociar no mundo e com o mundo.
O mínimo de desalienação é produção de uma autonomia para se guiar com pernas próprias.
Enquanto bom burguês neurótico necessita-se sim de análise permanente enquanto instrumento possível para se produzir autonomias cada vez mais plenas.
Sabemos que todo processo é precário em última instância ,mas repleto de eficácias também.Autonomia também tem limitações.Plena, em última instância, não há.É impossível tal qual a perfeição-pretensão daquele entrevistado televisivo.
Ao olhar para uma rua ,cujo desenho se transformou por completo a ponto que só reconheço que ali ainda há algo que se chama rua,não encontrei o que procurava.Encontrei somente restos daquele tempo que também não há, tão pouco , ao menos de fato ,mas que resta simplesmente (ainda bem!!!) no direito das evocações mnêmicas mais íntimas e tão minhas.
Todo o olhar desmoronou diante daquilo que não estava lá. E o que restou então?
Um texto a mais pode ser o preâmbulo para recomeçar ou consultar oftamologistas bem treinados.
Por certo, o incômodo trazia o gosto de uma estupidez saudosista e de uma outra ,não menos estúpida,de um futuro iminente e temerário.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Dr.Gachet que observa

Conheci Sergio através de um amigo em comum.Era dia bonito.Havia sol entre nuvens preguiçosas.
Sergio era colega de colégio de alguns conhecidos meus.
Tinha cara e trejeito de gringo.Era uma espécie de quase gringo.
Sua mãe nascera na Holanda e ele por lá passara diversas vezes.
A Holanda para mim, a essa época, era tão somente um sonho de Van Gogh,Rembrandt...e Sergio tornara-se uma curiosidade.Era extremamente educado,inteligente - um dos melhores alunos de toda a faculdade de Engenharia ,na Universidade em que estudava - e culto.Sua mãe tinha vocação para o canto lírico e ele a acompanhava nas empreitadas dos chamados recitais.
O vínculo se fez.Encontrávamos vez e quase sempre para uma conversa e uma dita farra.A farra era mais um tesão meu do que propriamente dele.Sergio era um gentleman.Gentlemen não fazem farra.Podem participar de orgias bacanas ,mas farra....Tenho até um primo que é assim.Ele nunca fez parte disso.Ensaiou uns passos de dança,umas aulas para fazer cabrocha não desistir dele tão cedo no baile,mas não se enquadrava.
Farrear tem esse aspecto cafajeste.Há aquela bebedeira toda ,aquela falta de respeito pela senhorita da mesa ao lado -por mais que a dita cuja senhorita tente se fazer não merecedora dessa consideração respeitosa moralista-; por fim há aquele estado de alegria que retorna das profundezas rasas dos nossos recalques.E é mágico.Feito meu sonho de Rembrandt com Van Gogh.
Noutro dia bonito,chovia bastante, e ao retornar de um banho a mais, no oceano que inunda a nossa vista daqui,recebo estarrecido a notícia de que havia morrido,num acidente de carro,o irmão caçula do meu amigo quase sempre estrangeiro.Irmãos caçulas podem morrer?Então eu,caçula para sempre,posso morrer?
Não havia me passado pela vida que caçulas morriam. Seria hipócrita crer que desde então acompanhava o velho Freud em sua certeza de que não há inscrição de morte no inconsciente.A criança então diz ao parente inábil:"Sei que papai morreu,mas quando é que ele volta para casa?'.Pode ser só mais um exemplo,cunhado pelo mestre,já que precisamos de peras e maçãs para entender certas articulações.
A explicação mais contemporânea dada por outro mestre da Psicanálise,MD.Magno,é que a morte não há.Não há representação possível,nem tampouco experiência de morte.Donde vida eterna.
Sim.Arrogantes juvenis que são sábios na sua certeza de que quem morre são os outros.Resta,entretanto, a lembrança possível de que toda carne tem fraquezas indeléveis.
Telefone desligado,era hora de partir em direção à casa do amigo.Não fui sozinho.Tive a companhia de outro amigo,um médico recém formado.Nunca se sabe o que virá.
A cena e a consternação eram brutais,afinal o rapaz morto tinha vinte e poucos anos.Bonito,estudioso,alta burguesia,roteiro perfeito.Vida maravilhosa.Morrera afogado ao bater com a cabeça e desmaiar,após o acidente com o carro. A namorada tentou salvá-lo,mas ele era pesado,forte feito um touro.Não conseguiu puxá-lo para fora do automóvel.Era uma noite de primavera verão.Novembro,'Saturday Night Life'.
A cidade maravilha -alcunha do Rio muito mais do que um Janeiro- vivia as suas primeiras eleições municipais em décadas.Houve fraude.No ano seguinte,recadastramento de todos os votantes e votados por conta disso.Livrei-me da multa ,pois não aparecera para cumprir obrigação eleitoral enquanto mesário.Sim,mesário.Aquele funcionário público que fica sentadinho conferindo títulos eleitorais dos outros.Aqueles títulos sem fotos.Agora,parece que já há.Não sei ao certo.Uma foto de título pode ser igual ao obituário da seção policial.
Meu amigo que, teve um irmão caçula morto, jamais se recuperou.Por certo,não fora somente isso que provocou todos os sintomas dos quais ele,passados vinte e seis anos do desastre,continua refém.
Mudou-se com a família, de endereço, incontáveis vezes.Aquela instabilidade me gerava certa desconfiança de que não fora o único a ser golpeado profundamente.
Jamais conseguiu dar sequência à profissão escolhida.Vive,faz uns 15 anos,na Holanda materna.Perto da capital,numa pequena cidade.
Sempre acho que qualquer cidade fica perto da capital,por lá,na Holanda.Mania de quem nasceu em terras continentais e o resto do mundo fica diminuto.Hoje,Sergio mora sozinho.Já está assim desde sempre.
Lá,tem uma vida.Trabalha onde se trata.Recebe ajuda previdenciária de um governo de país civilizado.Aqui,só encontrou linchamento."Imagine.Ele disse numa entrevista para um emprego que avistara um duende,ao sair do avião"!!. Perguntei então ao racionalista impoluto, que dissera o que está escrito acima, o seguinte: " E você não é aquele que crê em Jesus?Que reza para ele?Que conversa com ele assim.......repleto de transcendências?" Qual é a diferença da qualidade do delírio?É só uma questão política?Quem pode garantir?
Ao me despedir ,naquele dia belo ,chuva/sol-,e deixá-lo partir com a sua saudade,avistei, no andar segundo, a sua mãe que escutava algo feito canto.Ou seria um pranto?
Van Gogh e a sua turma sempre a confundir.Dr Gachet que nos observa.