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quinta-feira, 7 de março de 2013

Uma certa Rosa


Maria Rosa era uma menina com seus cabelos loiros e ondulados. Morava na Rua Nascimento e Silva, numa casa com certo quintal gigante para os passos dos pequenos. Jogamos bola uma tarde. Era aniversário de seu irmão, o Jorge.

Jorge tinha os seus cabelos negros e era bem bonito. Aliás, a família toda era bonita. Não há lembrança de seus pais, mas eram bonitos também. Havia quem garantisse isso. Existia, afinal, a inveja de sempre. Fotogenia é uma forma de poder.

Fui apaixonado por Maria Rosa durante um tempo. Paixões foram feitas, felizmente, para passar. Feito modismo. Numa noite, cercada de anseios pela chegada dos pais, que estavam a viajar para o estrangeiro, ganhei um jogo com bonecos de plástico. Um jogo de futebol que meu pai trouxera da Argentina. ‘Uno regalo para El pibe’.  Os bonecos plastificados vestiam camisetas do River Plate e do Boca Juniors. Essas duas instituições são os dois principais times de futebol da Argentina. Adorava aquele jogo. Ao longo da caixa de papelão que o embrulhara, desde Buenos Aires até o Rio de Janeiro, marquei uns gols sob a forma de escrita infantil. Um tento amoroso. Declarei-me à Maria Rosa. Escrevi seu nome, desde a arquibancada imaginária à dureza das gerais. Jamais mostrei a ela. Sim, pois a mocinha tinha um namorado à época.

O nome dele? Esqueci. Engraçado, não? Porém, não me esqueci do seu rosto bonito e dos seus olhos azuis turquesa.

 Ele era mais experiente do que eu nesses temas amorosos. Tinha nove anos. A criatura aqui tinha somente oito.  Isso fazia muita diferença aos belos olhos da menina. Creio que trazia algum tipo de segurança. Ainda que os maldosos colegas assegurassem que essa tal segurança era fruto da grana que a família do bonitão esbanjava.Eu não tinha essa grana. Um tio bem mais experiente, já que tinha uns 40, e essa marca para um pequeno indicava algo de eterno, garantia que a grana remexia com nossas vísceras. Curioso, pois acreditava que o coração fosse um músculo! De repente, as vísceras são os tais sentimentos. Sentimentos esses que supomos não possuir suas razões. Apesar de certo senhor – bem mais experiente, feito estátua, conclamado Pascal –, ter garantido que sim. O tal músculo as tinha. Tempos depois, tempos de agora, alguém ainda mais experiente me garantiu que a razão também tem lá os seus corações. Os sentimentos, portanto, expressam inteligências. São tão racionais quanto qualquer ideia, qualquer conceito, qualquer estratégia. E a formação cobiçada passa a considerar a outra formação que a cobiça...

Maria Rosa desconfiou que eu lhe fazia a corte. Comentava insistentemente com a irmã do meu melhor amigo, O Guilherme. Essa irmã falou para mim. E eu conspirei para que nos encontrássemos no fim de semana seguinte. Quem sabe um “drink” de.. “Milk-shake” no Gordon ou no Bob’s? Aqui mesmo em Ipanema? Quem sabe nos próximos finais de semana todos? Até completarmos o tempo que nos separa desse texto? Vejam quanta experiência a trocar?

A irmã do tal amigo, por sua vez, dissera que ela viria passar o fim de semana seguinte na sua casa. Naquele tempo era assim: a gente andava uns quatro quarteirões no bairro em que se morava e passava o fim de semana na casa de um amigo. Eu adorava esses fins de semana! Os apartamentos dos amigos eram enormes e podíamos fazer uma arruaça despretensiosa! Sinto até hoje o cheiro daquela arruaça, naqueles lugares dos amigos. A casa do amigo era sempre uma novidade familiar e intrigante. E as pessoas eram diferentes e tão iguais. Mãe e irmã de amigo são assexuadas para os pequenos moralistas. Fiéis pela amizade. Elas desfilavam com camisolas e badulaques pela casa grande e a gente fingindo que não percebia. Era o buraco da fechadura na cara de pau da criança taradinha.

Na Rua Prudente de Moraes existiam vários apartamentos amigos. Uma espécie de latifúndio urbano sem escritura. Seria essa uma das razões do interesse pela política e pela loucura? Não custa recordar que Prudente foi o nosso primeiro presidente civil e que morreu doidinho, coitadinho! Creio até que não completara o mandato. Mandatos presidenciais podem ser muito perigosos para organismos mais suscetíveis.

O Brasil, essa multiplicidade de singularidades marcantes, atravessou uma tragédia, um pouco mais recente, do que a de Prudente. No início dos anos 80, a morte – que não há enquanto experiência, vivência, formação... -, chegou para uma denominada Nova República. República tão velha. Apodreceu antes de nascer. E o porquê? Era uma farsa. Muito amadorismo reunido e uma cambada de calhordas, velhacos republicanos, à espreita.

Nos anos oitenta, eu não sabia mais de Maria Rosa. Nem tão pouco das vísceras. Vai se tornando uma ignorância falante à medida desse tempo ilusório, iludido. O fim de semana, contudo, existiu.

Ficamos no quarto ao lado do quarto das meninas. Quarto das meninas é quase uma catacrese! O quarto era quase igual: na metragem, no significante quarto, naquela janela que mostrava Maria Rosa passando toda linda, correndo, rindo, feliz. Então não tinha que ser quarto das meninas! Era só mais um quarto com as meninas!! Ah! O porquê de quarto para meninas? Porque os babacas, perdão, ‘nosotros’ supomos que cor de rosa era cor de menina e para as meninas! O machinho do azul cabe aos donzelos! E isso é sério, pois corre o mundo, há séculos! É uma verdade quase que absoluta na cabeça doente de cada dia. Esquece-se que é uma cor como tantas. E que anatomias corporais não determinam cores, escolhas de parceiros semelhantes, necessariamente. São opções possíveis, disponíveis, como tantas outras. Múltiplos, singulares, de uma espécie única. Com uma identidade absoluta. Tudo bem que era um outro quarto...mas para qualquer Um.

Maria Rosa não queria saber muito dos meninos que brincavam de jogar botões. Um outro jogo de futebol, com botões desnudos, numa mesa que imita um campo de futebol. Uma pena, pois eu jogava muito bem! Fui campeão e tudo. Fazíamos um outro teatro – outros personagens- com os botões que se tornavam jogadores. Catacrese futebolística? Não. Brincadeira da boa. Pra lá de bom! Houve troca entre os competidores. Trocávamos o Zico pelo Rivelino, por exemplo. Quando envolvia operações, digamos assim, complexas, apostava-se até o lugar privilegiado para espiar a outra rosa, nome desconhecido, que trocava de roupa generosamente, no prédio em frente. A generosidade era porque ela se exibia para valer! Sabia que estávamos por perto.

Maria também. Só que com laços infantilóides, blusinhas comedidas, roupinhas despretensiosas. Ainda bem! Caso contrário seria uma anã. E não aquela certa rosa.