Marcadores

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

 Boa noite, Antônio.

Antônio era um funcionário vigia-porteiro-lavador de carro-descupinizador, isto é, era daquelas criaturas que fazem de um tudo quase um todo e justo no edifício onde nasci. 

Pequenino, nordestino, torcedor do Botafogo e que fazia questão de chamar, por aqueles que por ventura o diligente funcionário tivesse alguma afetuosidade maior, de Zé (Abreviação indolente de José) ou Maria. Dependia esse tratamento dispensado, obviamente, da referida anatomia. Parece até que era fato consumado para uma certa geração de cearenses que menino vira José e menina, necessariamente, torna-se Maria. E assim o Antônio minimizava em torno de 2 vocábulos, nomes próprios mais frequentes D.C (Depois de Cristo) suas possibilidades para o trato pessoal. Mas como já foi dito: somente para aqueles considerados íntimos.

Trabalhava no prédio fazia décadas. Eu o vi desde muito criança e para minha alegria vingativa, típico das maldades de criança, ele não passou dos quase um metro e sessenta centímetros de altura. Desafetos próximos garantem que era em torno de um metro e cinquenta e sete centímetros a sua ‘portentosa’ estatura. 

Depois que parti para um exílio de 7 anos desse lugar que, apesar de comprovável decadência, ainda mantenho a ilusão juvenil de um principado ipanemense, foram raros os momentos em que nos reencontramos. De acordo com os arquivos resignados pelo desgaste do tempo, foram dois reencontros, mais precisamente nas duas ocasiões em que o imóvel familiar esteve desalugado e nos acolheu para as férias. A primeira vez se deu nas ditas férias de inverno nessa cidade que costuma ter duas estações bastante frequentes anualmente: o verão e o inferno. Era julho e estávamos, portanto, no verão. Na segunda ocasião, estávamos instalados no inferno também conhecido como dezembro/janeiro. ‘E aí, Zé? Cresceu!’- Ele me saudava dessa forma. E a reação que surgia, sem contenção possível, era uma gargalhada sincera.

Alguns anos mais tarde, mesma estatura, menos cabelo, uma barba para disfarçar a calvície e também para aparentar mais idade (Vejam que curioso a travessia de uma boa e velha neurose: aparentar mais idade num dado momento e logo ali, adiante, querer fazer o contrário) retorno ao edifício, batizado com nome de moça e que não é Maria nem ao menos José, para viver e trabalhar. ‘Olha o Zé? Dirigindo carro e com barba de homem adulto’! - Disse-me Antônio, risonho, enquanto abria o portão da garagem para que fosse instalado aos poucos a minha mudança definitiva. Ele, ao contrário, estava praticamente igual. E aquele tom de voz havia sido registrado pela memória afetiva nas minhas primeiras impressões. Um dos símbolos do edifício me conhecera pequeno, ainda criança.

 Na primeira conversa que tivemos, após o retorno para o local onde nasci (Se bem que fica difícil estabelecer o que vem a ser mesmo um nascimento) falamos sobre o futebol e a sua devoção pelo Botafogo de Futebol e Regatas. Antônio tinha contemplado Garrincha, Nilton Santos, Zagallo, Amarildo, dentre outros ‘Botafogos’ talentosos, artistas da bola, exibirem-se no Maracanã, nos anos 50, 60. Já na virada para os anos 70, assistiu Jairzinho, o furacão daquela Copa de 1970, aniquilar adversários. Divertia-se ao repetir que o meu pai era um pé frio danado já que logo após ter chegado ao Rio, vindo de São Paulo, mas tendo nascido no Rio Grande do Norte, esteve presencialmente naquele velório para 200 mil convidados (Dentre populares e figuras egrégias) e que também se fez conhecer como ‘Maracanazo’: o dia em que um país pequenino, mas tão brioso, aguerrido, e o seu esquadrão futebolístico derrotou a seleção canarinho por 2x1, de revirada, conquistando a Copa do Mundo de 1950.

Nos anos que se passaram, quase 10 anos, dentre favores e serviços remunerados que me prestou, prestava-lhe uma homenagem desportiva ao pagar o lanche da madrugada silenciosa. Um adendo importante:

Existe um horário e uma época do ano (Aqui no Rio é mais frequente quando está um pouco mais frio) em que o silêncio adquire algumas oitavas. E o danadinho, volta e meia, buzinava no meu apto, através do interfone, quando o seu clube predileto ganhava algum jogo contra o meu. Dito e feito: acabava a peleja e o ‘trintrin’, que na verdade não faz trin muito menos um trin de acréscimo o tal aparelho, surgia ao longe.

- ‘Alô, alô.’- perguntava fingindo nada saber. Não se aborreça. É assim mesmo. - Dizia do lado de lá, riso quase solto, o sarcástico cearense Botafogo.

Foi então que naquela semana estranha, após retornar do cinema e destino a se metamorfosear de Réquiem (Réquiem para um Sonho foi o filme assistido no falecido Cine Paissandu. Ali no Flamengo. O bairro onde nasceu o clube) encontrei o velho guardião noturno do edifício calado, ensimesmado, quietarrão. A curiosidade então fica atiçada e indaga se algo não ia bem. Ele então disse que estava com bursite no ombro esquerdo. Bursite é aquela inflamação nas articulações que realizam movimentos frequentes e repetitivos. Podem ser bastante dolorosas essas crises de bursite. Acrescentou ainda que tinha ido ao hospital e por lá obteve o diagnóstico. Prescreveram também os medicamentos adequados e o porteiro faz tudo dizia que estava tomando conforme o recomendado. Antes de me despedir, quis saber se aquela confusão, aquela loucura no apto do inquilino do andar penúltimo ou último (Não lembro ao certo qual deles era precisamente, mas que acontecia em um dos dois últimos pavimentos, temos certeza) persistia. A resposta foi negativa. ‘Se mandou, fugiu, aquele vagabundo. Lembra o dia que você retornou das suas gandaias de solteirices e havia um carro da polícia federal aqui na porta? Pois é. Ele se mandou pouco tempo antes da chegada dos ‘home’.

Como poderia me esquecer. Parecia uma operação dessas que vemos hoje a fim de prender os larápios dos cofres públicos. E não era tão somente um, mas uns 3 carros da PF estacionados em frente ao prédio que tem nome de menina. E estavam a atrapalhar a minha entrada na garagem.

 A história é a seguinte: um cidadão de outro Estado, vindo do Norte do país, montou no apto alugado um estúdio pornográfico. Até aí, se os ruídos e imagens não vazassem para outros domicílios, o que ali se passava era gozo próprio. A questão é que as protagonistas eram meninas aparentemente menores de idade. O que foi comprovado com o escândalo que se seguiu, incluindo a extradição do cidadão-vagabundo em questão e que fugira para o exterior. Naquele tal dia, melhor dizendo, naquela tal noite mencionada, com carros e ‘os home’ de preto. O foragido era filho de deputado federal. Tudo fora revelado, um ano depois, num telejornal nacional, de maior audiência, quando o procurado pela justiça foi preso. E o problema também era outro: miséria humana, o cinismo, a canalhice familiar, a desonestidade, o perverso. Nelson Rodrigues talvez dissesse: ‘ o Tarado Insaciável’!

O calaceiro, o vadio, deve ter dado um cano, uma volta nas mães das meninas, ou seja, não as pagou conforme combinado. Lembro-me daquele vai e vem de jovens sorridentes, roupas minúsculas e o guardião do nosso condomínio, bravo Antônio, irritadiço, indignado. Ele tinha orgulho daquela filha que se tornara dentista. Estudiosa e que também contara com a sua ajuda. Financiou seus estudos e a ajudou com o primeiro aluguel do consultório. Gostava das meninas, mas não daquela maneira.

Segundo ele, as mães ou responsáveis ou cafetinas (Ele jura que escutou algumas chamando-as de mamãe) ficavam na esquina próxima enquanto as mocinhas trabalhavam. O colega porteiro do edifício próximo, por ter escutado sobe o libidinoso tema, interessou-se pelo caso e ficou de butuca. Ele jurava que tinha visto as moçoilas entregarem dinheiro para essas criaturas que as aguardavam diante de lanchonete conhecida. Faziam o seu lanchinho vespertino enquanto o indecoroso, o ordinário, fazia o dele. Além de filmar a putaria para depois revender as imagens.

Quando o insubstituível vigia do edifício Liliane me contou tudo isso, a farra já tinha cessado. Contudo, evocando a memória sem vergonha, entendi o significado de certos sons, ruídos, provenientes do andar mais alto; uma espécie de gemedeira estridente, juvenil.

No dia seguinte ao diagnóstico relatado sobre bursites, encontrava-me deitado, no aguardo do sono, e com as janelas abertas anunciando a estação mais quente do ano a se aproximar- nesse caso era o inferno que mandava fagulhas e lembranças (Estávamos no final de novembro, numa sexta feira, madrugada de Sábado) -, e eis que aquele gemido erótico surge novamente. O sono, que resistia a se fazer presente, agora mesmo é que não viria tão cedo. ‘Que droga. Logo, hoje. Amanhã, tenho trabalho em Jacarepaguá, logo cedo. Essa gente não pode fazer sacanagem aos Sábados ou nos feriados? Num dia santo para o pecado ficar mais quentinho? Gente tarada, Nelson. Você sempre com a razão. Sobretudo, na libertinagem. ’ E o imaginário nessas horas? Mas parecia Real. De repente, parou tudo. O mundo também. Não havia mais ruído ou gemido. 

Na manhã seguinte e o despertador sempre atento apitando, fazendo barulho. Um dos piores inimigos de quem não dormiu direito e para melhorar tem uma jornada sabática pela frente.

 Vrumvrum é o som que emana do motor do automóvel quando acionado. É um vrumvrum rouco, mais para tenor do que para gemido infanto-juvenil. O Dia está bonito.  Com aquele azul celestial bem azul. Não se vê nem nuvem a causar malcriação na vista. No comando do carro  e se aproximando da saída por onde também se entra nesse edifício, da tal Liliane, em que a singular portaria não é bem lá portaria, garagem é parquiamento , porteiro também recebe um outro nome, percebo que os outros três funcionários do nosso condomínio estão em pé, perfilados ,do lado de fora da entrada-saída da garagem que não é, oficialmente, registrada como uma garagem. Estão cabisbaixos e nada dizem.

Algo estava visivelmente errado. Eles costumam ser falantes, e naquela época, estavam na glória dos seus trinta e poucos anos. Passamos devagarinho, eu e o ‘Vrumvrum’ mecânico, a fim de que não fossemos tão apressados demonstrando desinteresse e nem tão vagarosos que pudesse postergar ainda mais uma certa agonia que se via.

‘Bom dia, pessoal. O que houve? As caras não estão muito boas? ’- Era preciso se arriscar.

-Antônio, o nosso ‘Seu Antônio’, morreu ontem à noite. Teve um infarto fulminante. Buscou socorro no apto daquela Dra. Fulana de Tal, mas ninguém escutou. Morreu ali mesmo, na porta do apto. - Comunica aquele que se tornaria uma espécie de xerife da portaria que também não é portaria.

Perplexo, devo ter perguntado ou dito alguma asneira:

-Mas ele gritou, pediu por socorro? 

Frase estúpida, afinal como que um semimorto pode conseguir gritar assim? Como se estivesse arrombando a porta da Dra. Que Não Escuta. Dizem até que não escutava há muito tempo.

‘-Parece que não. Houve quem escutasse uns gemidos de dor vindos daqui da entrada. A empregada da Sra. Fulana Beltrana de Tal, nossa síndica, escutou um gemido forte, repetitivo, porém, muito cansada e como já era madrugada, adormeceu. E ele, o nosso Antônio, morreu para sempre. ’- O porta-voz dos seus, agora, ex-colegas explicava.

Foi isso. O que escutei era um gemido de dor, prenúncio da morte. Não era mais uma deliciosa peraltice de taradinhas dissimuladas com o taradão oficial. Era o Antônio morrendo. E por certo, ele não gozou com a morte porque é impossível gozar com o que não há. Ele gozou, sim, masoquisticamente com a dor que começou no ombro, estendeu-se para o braço e explodiu seu coração. E o sádico, aquele eu que tentava dormir, imaginando sacanagens. 

Não. Não e não, caros doutores imprudentes! Não era gozo de bursite. Bursite não tem coração. Apenas encobre, camufla, que não vem de lá, em certos casos específicos, a razão daquela dor. Bursite nesse caso era que nem o mandrião taradão e que um dia deve ter respondido para o fulano corretor que lhe alugara o apto onde quis eternizar sacanagens:

‘Que bom que o senhor gostou do imóvel. É pequeno para os seus padrões incríveis (E mal sabia o astuto corretor que os padrões ‘incríveis’ assim como pessoas ‘incríveis’ se multiplicariam na mentira, na cegueira dos nossos olhos, no passar de duas décadas), mas para um imóvel de dois dormitórios, na verdade quase 3 por conta do antigo e amplo quarto de empregada, é bastante razoável. E a localização dele é o ponto forte. O senhor inclusive, nesse andar mais elevado, consegue enxergar um pedaço do mar, da praia. Veja como está lindo hoje! Um verde caribenho essa coloração da água. Ah.... Já ia me esquecendo de um outro ponto importante a se considerar: É um prédio familiar.

‘Era. ’- Teria respondido o pederasta.

 Ao menos não lhe pode ser imputado a desfaçatez nesse caso. Ele forneceu alguma pista.