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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Mar ao amanhecer. Derradeiro.

Um grupo de jovens comunistas- época em que o mundo se preparava para entrar numa fria pós guerra dos anos 40 , século XX- e que não sabiam ao certo o que faziam, decidiram matar com tiros pelas costas um importante oficial alemão. Oficial dileto do 'fuhrer', o condutor lunático das tropas alemães com aquele bigodinho ridículo, as consequências por causa do crime- ato irreversível, definição para o trágico- seriam as piores possíveis. Por isso que a ingenuidade, inconsequência juvenil no caso, revela o não saber o que se fazia apontado antes. E é bem verdade que não sabemos o que fazemos nem tampouco o que queremos, em última instância. Caso contrário como supor a havência, enquanto estrutura, do inconsciente freudiano?
 O que comparece esconde o seu contrário. E essa operação mental chama-se recalque. Portanto, quando alguém costuma se referir a outrem como um recalcado- com a intenção de ofendê-lo- está de fato nomeando, a quem quer que seja da nossa espécie, corretamente, a tal pretensa figura. Uma boa definição. Se o tal agressor e sua verborragia desenfreada não for do tipo que passa a vida negando o que lhe diz respeito e colocando em contas alheias, enxergará o mesmo do que proclama de si no recalcado daquele tal outro. Nascemos recalcados. Ninguém escapa. Tem corpo, fudeu. E daqui a pouco não se precisará fuder mais com corpos humanos para que eles se reproduzam. E se há gravidade, por exemplo, o voo necessita de muita tecnologia para alçar outras nuvens. A ave que aqui habita consome alpiste em forma de querosene. Polui bem mais o vasto mundo de tantas outras aves, mas também  consegue reverter uma asinha defeituosa aqui, com agulhas, seringas e anestésico e outra acolá, num outro hangar.
Tanto as aves humanas mecânicas quanto as mais antigas, isto é, os gaviões, urubus e outras fantasias aladas têm seus fãs. E outros animais menos esvoaçantes também. Já existem mulheres, seres da nossa espécie, convidando amigos ou adeptos, para festas nupciais entre elas e o seus bichinhos de estimação. O tradicional chá de panela, rito para angariar regalos para lares futuros, traz a foto com o pedigree do pretendente. Dizem as bocas rotas que esses tipos constituem um ótimo partido, os seres caninos e felinos, já que não dizem não e aceitam coleiras com menos resistência. Tensões pré-menstruais também não os afugentam. Muito pelo contrário! Eles se sentem atraídos por odores mágicos, reprodutivos, e não se melindram com aquele novo ser que emerge mensalmente. E o erário fica por conta da senhorita e sua boa vontade.
Portanto, estamos no auge das diversidades amorosas, faz-se necessário o entendimento de que a sexualidade é uma formação psíquica, e numa era em que pensamentos totalitários não cabem. Já houve estado que proclamou o seu totalitarismo particular, tanto à direita quanto à esquerda, e obteve até algum êxito para logo em seguida fracassar. Igual a certos casórios. Exceto os dos bichanos e com os bichanos.
Ao assassinar o oficial alemão graduado, na cidade de Nantes, com dois tiros, os dois rapazes franceses, heróis da resistência à invasão nazista no início dos anos 40, foram imediatamente traídos pelos colaboracionistas - termo técnico para alcaguete- nascidos no mesmo país. Franceses, em diversos cantos da nação Paris, entregando seus próprios compatriotas à forca germânica, para deleite gozoso do psicótico de bigodinho estranho. Pouco importava a idade ou ofício. A paranoia- importante método de produção de conhecimento- triunfava onde a lucidez morrera. Todo mundo era comunista, totalitário, estatizante e conspirador. Até mesmo os jovens de 16, 17 anos que acabaram de nascer. Poetas eram os terroristas mais temidos.
As anotações dos diários e as cartas enviadas às famílias dos condenados viabilizaram o roteiro para essa história, para o filme. A cena em que todos estão escrevendo e lendo as suas últimas palavras a serem lidas pelos últimos habitantes do seu mundo a se importar com o que ali acontecia é belíssima. E com a vantagem de que não havia trilha sonora melodramática- tesão maior de diretor estadunidense- a amanhecer com oceanos.
O que amanhece é a dureza do irreversível fato de que aquele amanhecer terá sido único e derradeiro. Inclusive para quem fica.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Odorico-Gracindo-Paraguaçu.

Muito bom o documentário de Gracindo Junior sobre o seu pai, o ator, locutor e sábio, Paulo Gracindo.
Paulo Gracindo nasceu no Rio  mas dizia ter vindo das Alagoas, pois para lá foi bebê, para no retorno à cidade natal, um pouco mais crescidinho, metamorfosear-se  de Odorico Paraguaçu, Tucão, Coronel Ramiro Bastos, e outros personagens dele mesmo e das diversas regiões que encarnou. 
O documentário foi lançado em 2009. Paulo faleceu em 1995 aos 84 anos de idade. Trabalhou, apesar da cegueira e do Mal de Alzheimer, até o final. Na mini-série Agosto, direção de Paulo José, de 1991, Gracindo pai obtinha as orientações para marcações de cena vindas do Gracindo Jr, seu filho. Comovente a cena em que, ao lado do personagem interpretado por José Mayer, declara a sua mágoa e espanto pelo desprezo que a cultura brasileira, a gente, tem pelo velho, pelo idoso. Um país que prefere constituir-se de mediocridades juvenis. A carne fresca que só presta enquanto carne fresca para luxúrias. Sejam essas mesmas luxúrias efetivadas ou somente sonhadas. 
Supunha-se então que Paulo Gracindo tinha 257 anos. Um número bom e escolhido aleatoriamente.E que nascera ator na  e para vida. Trocava de pele feito camaleão na relva. Nascera inclusive antes do teatro brasileiro, da rádio nacional, da emissora oficial que o consagrara. A mesma emissora que não enviou nenhum grande dirigente de lá para os seus funerais talvez pelo fato de que Gracindo tenha declarado o óbvio e ululante aforismo, quase Rodriguiano: " Faço novela porque preciso ( na verdade queria) sobreviver". E isso há duas décadas atrás. Se ele presenciasse as besteiras que eles - espécie de onipotente ser-  insistem em chamar de teledramaturgia nos dias atuais.....Um dos seus últimos atos se fez numa peça-filme (creio que norte-americana, lembro-me de Henri Fonda no papel principal e seu derradeiro trabalho também) chamado num Lago Dourado. Há um momento em que alguém, uma moça bem bonita diz para seu personagem dourado: 'O senhor é muito velho'! O velho lhe responde sorrindo. A entonação de ambos provocou risos na platéia.
Gracindo pai quando trocou seu nome de batismo, Pelópidas, por algo mais simples, sofisticou-se. Odorico Pelópidas! Casou e assim permaneceu até o fim com a mesma senhorita. Moça rica, bonita e que se apaixonara aos 16 anos de idade. Tiveram um menino e duas meninas. O quadro cômico famoso em que  um personagem rico (primo rico) e um pobre ( primo pobre) vivido por Brandão Filho, no programa 'Balança mas não cai', surge dos diálogos, quase surreais, que Gracindo teve com o seu sogro abastado, no palacete que o então velho para ele possuía em Ipanema. O ator lhe contava sobre as dificuldades da profissão, os problemas financeiros que um jovem em início de carreira enfrenta e tinha que aturar as extravagâncias do afortunado ser e suas histerias, pois para o homem rico, o arranhão no seu Cadillac reluzente era o assunto mais relevante. As histerias sofrem de egocentrismo crônico, ou seja, o mundo só há por causa deles. O mundo só há para nós porque aqui estamos, logo, o mundo somos nós. Mas ele continua independente da gente. Ele, o mundo. Dos outros. Porque o nosso é esse que a gente considera aqui e agora. E é igualzinho a gente. Mas ele pode funcionar sem a gente. E funcionou antes. Se fizermos essa conta para trás, estaremos perdidos. O bonde já passou faz tempo. E ele sempre está em movimento. Só se pega, qualquer que seja o bonde, andando, movimentando-se sob trilhos. 
O egocêntrico portanto faz do seu sintoma a referência para o mundo. O mundo só  funciona de acordo com o meu sintoma. O sintoma meu é que tem que determinar as coisas. Elas funcionam a partir dessa referência. Logo, o Cadillac novo era mesmo o barato mais caro para aquele senhor do que o gotejar intermitente vindo daquele cano antigo e furado e cruel da casa humilde atrapalhando o repouso e as leituras do promissor ator, futuro genro. Surreal prosa, personagens eternizados. Max Nunes e Gracindo pai, seus autores.
Do alto da diversidade dos oito anos de um garoto assanhado - e movido por uma inveja que não abandonei ( ainda bem) , declarei guerra a Gracindo Jr. Ator, diretor e autor do documentário mencionado, mas tal-qualmente a outros galãs por um certo tempo, o ódio a se espalhar. Tudo isso misturado pois eu tinha traçado planos para me casar com a Sandra Bréa, uma bela atriz e dançarina, nos anos 70/80. Povoava o imaginário juvenil, a diva com trejeitos maluquetes, desde os tempos em que as imagens da TV eram não-coloridas. Tentativas, foram inúmeras e que se revelaram inúteis, para que a proposta matrimonial fosse recebida, e por um milagre, aceita. E esses meus planos, delirantes ou não, contrariavam os planos desses moços bonitos, e também mais velhos (Tipo Gracindo, Filho) , visto que bem mais experientes e cheios da grana, supunha-se. Eles a queriam só para eles.Sério problema! É o tal egoísta, talvez não egocêntrico. Aqui, o cidadão está se pondo em primeiro lugar nos seus interesses.O que lhe confirma alguma sabedoria, pois se não o fizer, quem o fará? Ele não deixa de reconhecer outros interesseiros. Não usa o seu interesse - bom ou mau- como guia para tudo, incluindo certas paixões. Não está centrado, focado, na sua configuração sintomática, egoica. E também seria em vão nesse caso já que a musa de outrora tinha uma constelação egoica imbatível. Desisti por negligência de musa. Insistia em não me receber. Quase acampei - e aí entende-se a dedicação patética dos iniciantes a esperar o aceno frouxo do ídolo distante- de alma e cuia na soleira da porta do seu templo midiático. Que mal poderia lhe causar? Uns beijinhos infantis sem más e mais intenções?! No mínimo, para fecharmos acordo de uma única interesseira parte, um tesão juvenil feito outro qualquer. Quem sabe capa em algum periódico, tal gesto? Esquecestes? Em qualquer um, desses que não têm maiores assuntos a tratar. Vivem disso. Ressentimento? Imagina.....
Com o passar dos bondes e cemitérios a inaugurar, os personagens foram mudando de rosto. O que era senhorita virara senhora, mas ainda bela se conservava. Contudo, Odorico-Gracindo permanece, para sempre, com quase 3 séculos de encantamentos. Talvez seja melhor preparar a festa para semana que vem? Junto com a inauguração daquele cemitério. E com o famigerado bêbado, o Nezinho do Jegue, a xingar a rodo. Em horário nobre. Feito de costumes.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O dinheiro e as paixões.

Dinheiro não está interessado em comprar felicidade. Está interessado na compra de felicidades. É plural, múltiplo. Não promove totalizações. Indica, sim, diferenças, multiplicidades.
Multiplicidades que possuem as suas particularidades e podem ser nomeadas uma a uma. Felicidades múltiplas tipo automóvel bacana, bons planos de saúde, aquela viagem, aquela casa, a inveja do vizinho, aquele articulação sob forma de escultura, pintura.Bons livros, aquele restaurante...Até mesmo aquela paixão. Pensam que não? Quem já trafegou pelas rodovias dessa vidinha que se apresenta conhece do riscado. Os que cinicamente denegam a função curativa da grana, mentem. E sabem disso.
Minha geração se fez ingênua mediante ditadura militar à direita. E os de direita costumam acreditar cegamente naquilo que lhes ensinaram, alertou Millôr Fernandes. Homem sábio que conhecia do riscado. Inventou, juntamente com o estilo próprio das suas traduções o frescoball - aquele joguinho com raquetes de madeira e bolinha de borracha para se jogar na areia da praia de Ipanema. E que de frescura nada tinha. Millôr, falecido em 2012, acrescentou também que os canhotos e suas ideias fazem o caminho contrário dos destros adversários. Segundo ele, cegamente, acreditam no que ensinam.
Os tempos contemporâneos nos cercam com possibilidades de jogar com todas as possibilidades. Resta saber e aplicar o que for mais profícuo, eficiente naquele momento. É o que MD.Magno chama de um movimento político ad hoc. Não se toma partido, muito menos a priori. Considera-se cada situação, região, sem valoração disso ou daquilo outro. Sem catequese ou imperativos tampouco. Há uma tentativa de neutralização, suspensão, dos nossos sintomas e gostos para se poder considerar as possibilidades em jogo sem maiores pré-conceitos. Indiferenciar algo, um fato, uma coisa, alguém, não é desprezá-lo. E sim, considerar as disponibilidades, o máximo de formações possíveis, que se apresentam. Todo o sintoma racista e xenofóbico que sempre caracterizou a nossa espécie, e nesses tempos recrudescem com toda virulência, podem se diluir com tal estratégia. Política envolve disputa pelo poder. Qualquer um que se imponha. É uma guerra. Não se escapa disso. E qual a melhor guerra a se travar no momento que se está e por vir? Aliás, para o futuro....
Em distintos momentos do jogo político brasileiro em que se aplicou algo próximo, mas não bem isso que fora mencionado, as resultantes foram melhores. A dupla Campos Sales- Rodrigues Alves (ambos ex-presidentes na chamada Velha  República) 'locupletaram-se' sem saber. O primeiro optou por uma política austera, contenção de gastos, poderia até se dizer monetarista, ao colocar o trem em rumos mais aprumados.Saiu do Palácio do Catete (RJ) sob chuva de ovos, tomates. A multidão e suas razões. Tarefa bem feita, popularidade em baixa. Seu sucessor, Rodrigues Alves - distinta Avenida do centro do Rio de Janeiro- nascido em Guaratinguetá, Estado de São Paulo, no vale do Paraíba, pode adotar uma política desenvolvimentista o que gerou enorme progresso para  a capital do país à época. Quem diria? Quiseram os  caprichos desse haver que dois paulistas trouxessem progressos para cariocas e fluminenses. Campos Sales também nascera no Estado Orgulho Brasileiro, na cidade de Campinas. Décadas depois, veio a Dupla Getúlio-JK. No segundo reinado de Vargas, as leis trabalhistas renderam vendavais esperançosos de um 'welfare state'. Aquele desenvolvimento socioeconômico de inspiração Keynesiana. Lei trabalhista exarada em pleno estádio futebolístico do clube desportivo que desde a sua fundação teve preocupações com inclusões sociais: O Clube de Regatas Vasco da Gama.
Juscelino Bossa Nova tocou o desenvolvimento para frente. Seu plano de metas acionava o cronômetro em cinquenta anos em cinco. Audácia para quem se deslocava em fuscas e outras potências tecnológicas do período em questão. Foi deveras gastador, perdulário com as contas públicas ao inventar a capital que se ergueu no centro-oeste do país: Brasília. Um sonho seu, pesadelo para muitos. Com a nobre participação inventiva de dois brilhantes arquitetos-urbanistas: Lúcio-Costa-Oscar-Niemeyer.
O que explodiu, após comício do homem mais marginalizado e desprezado da história fascista brasileira, o Ex-Presidente Assassinado João Goulart, repercute estilhaços até hoje na carne exposta de cinismo, covardia, molecagem carnavalesca. Até a música do filme dedicado a ele, filme de Silvio Tendler, foi incorporado à morte, aos funerais, do que ganhou no tapetão parlamentar e não desfrutou. Um destino Guimarães Rosa? Não. Sobretudo, sem a mesma genialidade e originalidade do escritor conterrâneo. Lá das montanhas de Minas, veio e se foi Tancredo Neves.
 Conta-se que Rosa faleceu vitimado por um mal súbito, algum incauto-douto nos convenceria que foi de virose sertaneja, três dias após a sua posse na Academia Brasileira de Letras. Alívio para certos idiotas imortais que proclamavam que Rosa inventava coisas, palavras que não existiam. Como não existiam se ele as dizia e eles proclamava? Esqueçamos ou não, somos povoados por entidades supremas e imortais. Diadorim, mais que suprema em sua singularidade menino-menina, deve ter se encantado feito de Rosa. Já Tancredo Neves adoeceu poucos dias antes da sua posse enquanto primeiro presidente civil pós ditadura militar. Morreu sem botar a faixa no peito e tirar aquelas fotografias feitas sem graça. Presidente por essas bandas deveria balançar um cetro abarrocado, porque maneirista seria.
A História brasileira é quase sempre ignorada pelos brasileiros. Perguntado sobre eventos , fatos, significantes da história mundial sempre aparecerá a Revolução Francesa, Russa, etc. Pelos nossos lados, nada há de especial. Talvez por essas e outras é que o assassinato de ex-dirigentes ou acidente aéreo que vitimou algum algoz ditadore nunca foram muito do interesse popular. E o que vem a ser de interesse popular seria algo tal como....Maquiavel mostrava o pão, alimento nobre, um circo de verdade e seus palhaços seríssimos. Nomadismo de malabares. E não se trata de nenhuma teoria conspiratória, paranoia válida e não necessariamente doença, mas que conforma vitimizados. Descobre-se que o mundo sempre foi esquisito, que a espécie homem produz - além das maravilhas protéticas e saberes importantes- muitas canalhices, sujeira. Logo, desinteressado por ele nos tornamos. Paralisados, estéreis. Pois, para que se mover visto que vasto mundo tem certos horrores e eu, tu ou ele "kiko" com isso? Contudo, não largamos o osso. Quanto investimento para o deslocamento quase zero! 'Jamais conheci alguém que tivesse levado porrada. São todos príncipes nessa vida'- Fernando Pessoa.
Há um filme de István Szabó , cineasta premiado húngaro," Sunshine o despertar de um século" , de 1999 , e que é exemplar. Retrata três gerações de uma família austríaca judia e seu périplo por diferentes épocas, regimes, sistemas de governo. Desde o fim do século XIX até a Revolução Húngara de 1956. Guerra e guerra. Nunca paz. Só há guerra entre as formações que querem mais e mais poder. Até o almoço familiar de fim de ano. 
Homenageia-se àquele que, numa tarde de elucubrações, momento para se despir para outro, traz uma cena para o cinema desejado.
Dizendo Adeus à máquina binária que só declama 0-1, por enquanto, e prestes a fechar a cortina vermelha do cinema de infância, eis que surge um menino, a menina e um convite. Dinheiro orgulhosamente apanhado no fundo da vida daquele bolso que por sorte não furara (bolso que conhece do riscado), após tantas batalhas e depois de tantos temporais ( Saudações a Ivan Lins e Vítor Martins!). " Que tal um sorvete"? 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Caravelas de papel.

Atravessamos aquela época de um transir de epístolas, chamadas também de cartas, correspondência, e seus parentes imagéticos conhecidos como cartões postais. Algumas eram escritas com caligrafia estilo receita de médico. Daquelas que só quem entende são decifradores de enigmas. Sabemos bem sobre essa confusão de letrinhas. No caso da receita médica, o farmacêutico a quem se encaminhava o mistério, tornava-se o salvador para o necessitado. Até hoje funciona assim. Pelo menos nesses casos
As cartas, apesar dos extravios e tormentas,  tornaram-se célebres por séculos. Conspiravam, amavam, guerreavam, traziam novos conceitos, inovações, lamúrias. Houve quem esperasse uma vida inteira pela carta de amor ou da guerra declarada. Mensageiros da realeza e a plebe iludida. Pouco importava a cor do brasão O papel nessa época era tratado feito obra de arte. Decifra-me ou te devoro?
Após a Revolução Industrial, o mundo foi modificado pelos super-macacos, nossos irmãos de outrora. O maquinário tornou-se mais sofisticado e as distâncias passaram a encolher. Mas como poderia isso ocorrer, todo esse encurtamento, se o globo continua como está?- algum invejoso das desventuras alheias indagara. É que as caravelas mudavam de vento, direção, explodindo querosenes e vapores por novos oceanos descobertos. A intimidade pode ser um problema!
Junto com toda essa revolução incrementa-se também o racismo às diferenças que se multiplicam vorazmente. Novas terras, nova gente que se conceitua raça. Uma estupidez na qual os sintomas vencedores, com a sua barbárie secular, perpetuam-se. Mesmo depois que se invadiu um pedacinho do espaço com as caravelas supersônicas, espaciais e seus super-macacos que flutuam. Suspensão da gravidade que nos puxa sempre para baixo.
Na Portugal, na Holanda, dos séculos XVI, XVII, as corridas espaciais, sob as águas, dependiam dos ventos e seus humores. Das bússolas e seus detratores.As pragas também se deslocavam num outro ritmo. Uma espécie de futebol cadenciado para época. Pegavam carona nas embarcações e preparavam-se para um ataque lento, gradual e assassino. A prótese conhecida como penicilina ainda não tinha sido inventada pelos heróis da microbiologia, infectologia, e portanto muitos morriam ainda jovens. Infância, por exemplo, não havia. É uma secundarização cultural, com o perdão proposital da redundância, do século XX. No século XIX, na civilizada Inglaterra, as crianças entre 10 e 16 anos trabalhavam doze ou mais horas por dia. Tudo devidamente oficializado. O relógio rodava numa outra cadência.
Para se ter uma noção, um homem de 30 anos era um senhor. Aos 50, considerado idoso. Isso se vivesse meio século e não embarcasse em qualquer canoa furada, por exemplo. Não fosse o destemido herói, capitão para muitos ainda não amotinados, navegador inconsequente. Àqueles que se amotinavam, desafiavam poderes maiores, talvez pudessem (sobretudo se levassem às últimas consequências essa guerra) ser chamados de heróis, senhores, dentro de uma lógica hegeliana e que muitos adeptos da concepção para o surgimento de  um estado moderno e suas ordenações jurídicas (Um Foucault por exemplo) viabilizar 'autonomias'. A maioria, obviamente, optava pela subordinação e consequente sobrevivência. São poucos os heróis para valer. Um dos maiores escritores e autores teatrais, Bertold Brecht , morto na segunda metade do século XX, considerava uma tolice uma nação sonhar, necessitar de heróis. Nós, novamente, achamos que precisamos de muitos. A começar por inventar uma nação de verdade.
Um outro virtuoso e romântico, Frédéric (Frederico para 'nosotros') Chopin, companhia nessa madrugada chuvosa, viveu somente 39 anos. Seu coração é que continuou perambulando entre a França e a sua Polônia. O seu último noturno. E sempre se sonha na madrugada quando da companhia de um outro grande ato de heroísmo. Chopin e sua produção são exemplares.
Nesse vento contemporâneo que sopra, pós caravelas, as pragas passeiam na velocidade dos bits e almejam a excelência voraz do q-bits. São supersônicos, digitais e viscerais também. Seguindo as trilhas, colônias ou floras de uma matemática vanguardista, possuem estruturas simplérrimas mas de uma complexidade e capacidade de reprodução e destruição enormes. Vejamos o exemplo do vírus HIV! Supostamente desenvolvido em laboratórios ultra sofisticados, tem uma configuração simples, frágil, mas com um poder deletério gigantesco nas ocasiões propícias para isso. Ainda que não estejam a bordo do supersônico, mas de um avião que oferece refeições sob forma de amendoins, os vírus, bactérias e outros bichinhos microscópicos se deslocam rapidamente. E desde sempre em terra firma, gravítico pouso, já que basta um aperto entre as mãos, íntimas ou não, para continuarem seu périplo assassino. A tal intimidade e os seus competentes estragos metamorfoseados por amores entre as mãos.
Numa pesquisa recente, já que tratamos de estragos, pesquisa essa  realizada em instituição dos Estados Unidos dos Plutos abelhudos, indica que o autismo, enfermidade séria, pode ser causado pelo uso abusivo em tenra idade, crianças bem pequenas, de certo tipo de antibiótico. As bactérias outras, pragas tão antigas e necessárias em muitos casos, multiplicam-se desordenadamente nos intestinos das pessoas a compensar a destruição de uma outra colônia de bactérias pelos tais antibióticos.Temos milhares de bactérias habitando os intestinos de nossa vida e milhões de conexões nervosas no tubo digestivo. Um número maior até mesmo do que o que se encontra na caixa craniana. A liberação de toxinas por parte de uma outra colônia bacteriana, nesse processo, que mais parece surto, feito célula cancerígena desmiolada, atingem e lesionam alguma região do cérebro. Novas drogas, pragas heroicas, transformadoras, salvacionistas, tem sido testadas e minimizam os sintomas da doença, mas não eliminam o mal. Lesão irreversível. Tal e qual a carta ou a embarcação caravela que nunca chegou ao seu porto limite.
'Entonces'  numa suposta noite, só pode ser suposta diante da luz da tela do computador, lâmpadas bisbilhoteiras que invadiram a escuridão dos outros, em tempos de boemia saudosa , o rosto de uma menina, que desfilava de patins na adolescência recuperada, reaparece de fato. O tempo para o inconsciente não há. É ilusório. E o fato é fato mesmo. Aquele que comporta e é contido de carne, pele, osso,odor...saudade. O computador iluminado afirma que ainda não pode exalar tais formações, mas aponta o futuro. Já a proa e a popa da embarcação menino balança pelo efeito daquele ajuntamento de fungos e outros elementos alegres, devidamente pasteurizados pelos heróis imortais, adorado de cerveja. E houve muita cevada nessa noite suposta. Havia também uma música que faz a sonoplastia do evento e parece que sempre haverá algum som. Pois está em todo lugar e nas estruturas mínimas que a Física contemporânea nos apresenta e lança para frente. Estética de uma nota musical.
O esqueleto, essa  formação patética que o homem porta, dá uma entortada, quase uma parábola de desajeitamento, mas não cai. Segura o macaco mico na marra! Encara aquele rosto que já teria sido lindo e novamente sonha com aquelas duas pequenas saliências do haver ( maravilhosas planícies, encobertas por um minúsculo e cafajeste pedaço de pano sutiã , e que lhe altera a pressão do sangue, a vermelhidão da face e outras protuberâncias a emergir). Lindos os gêmeos que  sobreviveram a todos esses anos. Ao que parece..Já que a mistura de cevada e luzes e sons ensurdecedores podem enganar as ilusões. Aparências? E eis que se aprende que as aparências não enganam! Engana-se quem pensa que as aparências enganam visto que existem outras  aparências que não aparecem ali, naquele momento. Mas existem e podem até emergir. Microscópicas formações em potencial. E que não se ofendam ao serem chamados por amebas, bactérias e quetais. Dependendo da enunciação e do animalzinho evocado fica até divertido, brejeiro. " Seu cachorrão! Olha só a cachorrona que finge não lhe reconhecer"!
Veja quanto preconceito! Só por que depois desses dias, milhares deles, independente da embarcação que tomaras, resolves apelar para moralismos, códigos de conduta! Por isso que quase tropeçaras na própria parábola do seu corpo enebriado, alegoria de gente!
E quem era essa dita cuja moça que não se esquecera? Pelo fato do pai ter havido enquanto oficial graduado da Marinha brasileira, rememoramos embarcações? Ou teria sido provocado pela lembrança  fincada, petrificada feito trauma dileto das neuras tão comuns e mal diluídas?
Não. Há uma pelotiquice nesse jogo cadenciado, toque de bola com cabeças erguidas, para o esquecimento intencional. Aquela carta desesperada, escrita às vésperas de uma viagem, fora uma vã tentativa-tentação de reaproximação. Para sermos mais francos, um pedido de chance a mais, via correspondência de papel em letra de forma.. Era igualmente bonita e falsa a tal correspondência, pois parte do que estava escrito nela era de autoria célebre e desconhecida para um menino de 14 anos e que supunha que Marcel Proust, romancista de tempos perdidos e madeleines-madalenas, fosse marca de sabonete raro. Quanto à raridade, estamos de acordo. Porém, restava sabonete.
Roubou-se sim e também. Não o texto de outrem, porque em domínio público tornara-se, mas um colar, bijuteria quase nobre, da única irmã. Havia pedido à mensageira, funcionária da casa e interlocutora vez ou outra, após o jantar, que entregasse tão importante encomenda, a tal epístola 'old- fashioned', ou seja, antiquada, e o presentinho afanado, naquele endereço escrito no envelope. Envelope de carta. em tom amarelado pelo tempo. Seriam caravelas de papel?  Envelope com cheiro de casa da avó, resiste-s? Avó, que entre outros fetiches, colecionava envelopes e endereços. Nunca desaparecera uma só correspondência daquela avó. Ela jurava que alguém receberia notícias suas. Tivesse sido íntimo ou não, esse quase ninguém procurado. Quanto ao contexto? 'Virem-se como puderem'- repetia enquanto dobrava envelopes e destinos escolhidos.
Enquanto a vida navegava pelas retinas, a menina, hoje mulher, subia as escadas ameaçadoras e sumia gradativamente. Tornara-se miragem, coisa invisível. Teria sido um micróbio?
A carta e o atrevido presente jamais receberam resposta. A mensageira garante que entregara no endereço indicado. Endereço que fora anotado dezenas de vezes por comprometimentos genéticos. Aconselhamento determinado por uma mãe confeitada de açúcar. O crime, aquele afanar entre irmãos, foi revelado um tempo depois. Talvez uns 500 anos. O mesmo navegar e o seu passar de anos, por onde nobres caravelas se perderam até atingir um porto seguro.
Não houve saudação ou sequer  um simples esbarrão entre aquelas duas crianças que um dia se gostaram. Apenas um resto de lembrança, uma breve surpresa , deveras dolorida, de uma certa caravela de papel que se encantou por algum outro canto. Alguma outra moça ou algum incerto rapaz. Endereço desconhecido.