Lá onde a coruja dorme!
A memória não precisou de muito esforço para alcançar as imagens e conversas da época. Esse enredo diz respeito a um fato pueril, despretensioso, leve e que alcança o mundo esportivo da bola dos gramados e chuteiras, hoje em certos recantos, milionários.
Waldir Amaral era um locutor de jogos de futebol. Vinha desde os anos 50, século passado, e tinha aquele timbre de voz inesquecível (qualquer um pode acessar suas narrações através das plataformas internéticas). Fã do Botafogo, dividia na Rádio Globo as transmissões com Jorge Curi. Jorge era um outro cracaço das eras gloriosas e glorificadas da rádio. Essa divisão passou a ocorrer quando ambos já estavam mais velhos. Waldir narrava um tempo do jogo, Jorge narrava o outro. Se bem que não era somente pela idade. Aqui meu relato se equivoca porque eles fizeram essa dobradinha na Copa de 1970. Aquela que ofereceu, para sempre, ao Rei Pelé, o seu trono devido. Informação importante já que cometi a indiscrição reveladora sobre a instituição esportiva predileta de Waldir: Jorge era muito flamenguista.
Jorge era irmão de Ivon que por sua vez era cantor e ator conhecido. Foi um dos criadores, aqui no Brasil do que Japonês inventou com o nome de Karaokê. Um lugar em que as pessoas têm acesso, através de televisão ou computador, de uma música, uma melodia em que a voz do cantor/a está suprimida. A letra da música surge na tela para que seja cantada pelos amadores também conhecidos como clientes. Obviamente, surgiram nesses espaços pessoas que sabiam ou sabem cantar. Mas isso não é o mais frequente. O que temos na maioria dos casos é aquele desastre de vozes desafinadas, com impostação equivocada, etc. Quando estive nesses ambientes, o cenário para mim sempre foi de palhaçada geral. Afinal, todo mundo tem currículo.
O Karaokê de Ivon Curi chamava-se Canja e restava ali na esquina da Ataulfo de Paiva com a Carlos Góes, Leblon. Essa esquina embalou as minhas tardes, pós- praia e noites, a dentro. Incontáveis fantasias, amigos revelados e eternizados. Como sabem, toda fantasia para a Psicanálise, desde Freud, é sexual. Foi no Canja que fui e num outro que ficava em Botafogo e que também se tornava célebre. Aqui, entre nós, que presente aos ouvidos, aos ouvintes. Hojendia, bem mais exigentes e sensíveis.
Waldir eu conheci no Caiçaras. Clube localizado na Lagoa Rodrigo de Freitas, Epitácio Pessoa (nome palaciano) e que deveria se chamar Laguna Rodrigo de Freitas porque está conectada tanto com a água salgada do Oceano quanto a água mais adocicada de um rio.
Entrei sócio do Caiçaras antes mesmo de saber escrever. Se é que aprendi. Permaneci por 18 anos e recordo da primeira festinha para os colegas do colégio que detestava. E de diversos festejos outros. O melhor daquele colégio que, carinhosamente, chamo do meu primeiro exílio, eram as festinhas. Tinham uns garotos enricados cuja família fechava o Tivoli Park, também postado na Lagoa-Laguna, mas com nome de um outro político e que não foi Presidente do Brasil: Borges de Medeiros. Presidiu sim, na República Velha, O Estado do Rio Grande do Sul.
O Tivoli merece esse parágrafo exclusivo à medida que foi para nós, tropicais seres, uma espécie de Disneylândia carioca. Uma década depois surgiu a Medinalândia, conhecida, até na estranja, como Rock in Rio. E o Maracanã, apesar da destruição desrespeitosa que sofreu a partir de 2010. Provavelmente, o falecido Estádio Mário Filho é o maior campo de golfe do mundo.
Portanto, após um sonho em estado de vigília, essa história acontecida reaparece nessas letrinhas:
Waldir narrando o jogo, Maraca raiz lotado. Ibrahim Sued, à época como fotojornalista e pouco se lixando para futebol, escalado para cobertura do jogo com sua máquina fotográfica a postos. Ele que, posteriormente, se tornaria apresentador de TV e colunista social com suas frivolidades típicas, repletas de mimos, badulaques, sem dar a mínima para aquela pelada séria, profissional, testemunhada por centenas de milhares de tarados (já diria Nelson Rodrigues. Irmão de Mário Filho e que batiza o estádio fincado na Tijuca) percebe algo diferente no cenário tão mundano do jogo de bola. Ali, na verdade, acolá, cochilando sobre o travessão (aquela trave terceira que fica acima do cocuruto do goleiro) dormia uma coruja. Pois É. Tranquilamente, uma coruja dormia.
Não sabemos se era macho ou fêmea, o tal bicho, mas Ibrahim garantia o fato e exibiu a imagem. Ele fotografou a ave, também conhecida como ‘a soberana da noite’, misteriosa, símbolo de sabedoria para tantos, dormindo enquanto a partida transcorria. Tão somente conhecemos sobre a anatomia do bichano para saber se possui glândula pineal e melatonina suficiente para adormecer quando o sol e o barulho da multidão parecem não atrapalhar seu repouso. Morro de inveja.
Capa do Jornal, manhã seguinte, a fotografia, diriam hoje, viralizou. Naquele instante, Waldir Amaral também se torna um pouco mais imortal, através das suas futuras locuções. Na linguagem do boleiro, ao dizer assim:
‘É gooool!!! A bola entrou no ângulo superior esquerdo da baliza que está localizada à direita das cabines de rádio. Tem peixe na rede do fulano, choveu na horta do sicrano. Lá! Onde a coruja dorme! ‘
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