Segunda consulta nesse ano. Tão somente se passaram quatro meses.
O consultório fica numa clínica de olhos no bairro. Frequenta-se o espaço há uns 15 anos. Achamos que sim. Difícil precisar.
Uma das situações que sempre causaram um pequeno desconforto é a vizinhança que divide os horários disponíveis para consulta. Uma turma mais impaciente, mais comprometida.
Do mesmo modo que no consultório de urologia , frequentado há uns 12 anos, por razões histéricas e preventivas, percebe-se que se está mais jovem, muitas vezes, bem mais jovem do que os novos 'amiguinhos ' ou clientes. Alguns, num estado deplorável. Sem exageros. Quem mandou se prevenir? Exageros à parte, tivestes um avô materno vitimado por um câncer de próstata. Morrera aos 76 anos. E o sofrimento foi grande. Naquela época, quimioterapia era mais destrutiva para o organismo do que hoje. A lembrança do meu avô favorito- pois com o vô paterno tive pouca convivência- remete aos agrados, referências importantes e exemplaridade. Homem culto, empresário e jornalista por profissão.Livreiro ( dono de uma livraria inclusive) por tesão maior. Educadíssimo, conservador. Não fez nenhum esforço- ao contrário-para que as duas filhas mulheres almejassem trabalho. Preferia que fizessem bom matrimônio e adquirissem filhos para criá-los bem. Assim como fez com sua esposa e filhos. E assim, filhas obedientes, amorosas, resignadas com o papel que o período lhes conferia, também o fizeram.
Minha foto está imortalizada acima da sua cadeira de balanço , numa das salas daquela bela e aconchegante casa, em Natal, RN. Está porque está aqui e agora nessas linhas. Esteve, por lá, por muitos anos. Eu sorria, meio banguela, cabelo liso e farto ( quanta saudade!) na única praça que chamo de minha e que resgatei nos últimos dois anos. E fiz questão de fazê-lo. É uma espécie de luta pessoal contra a destruição da cidade após bombardeio, pós olimpíadas. Pós Cabral, enganador, não descobridor. Quase a destruíram com o utilíssimo e bem feito jovem e juvenil, metrô .
A imagem poderia ajudar num teste neurológico ou numa ressonância magnética funcional. Já feitos num ano que, metade dele, perdeu-se.
Mas a lembrança ou reminiscência perseveram com cuidados e até competência. De volta ao lugar de consulta oftalmológica... ' E não é que já se viu aquele rosto e aquele jeito sem jeito, da última vez'.- Indaguei às pessoas que aqui por dentro habitam.
Era ele. Aquela bermuda disforme com aquele sapato de rico e aquela cara escondida por um óculos escuros com armação dourada. E por esses lados, eu estava fantasiado com os meus óculos escuros. Porém, com aros também escuros. Tal como na primeira ocasião, iniciava um discurso grosseiro, permeado de palavrões. Totalmente inadequado para o local e platéia presentes.
Na primeira vez, estava com a mamãezinha. Ele deve estar próximo dos 60 anos. Se não estiver, está próximo do fim. Porque qualquer década a menos, dedurada por delação ou não, na sua carteira de identidade, o condena. Como saber? Só porque se imagina e se registra. Lá e aqui.
Quando a mamãe do 'rapaz' se afastou para ser examinada, o 'mancebo' agarrou o telefone celular e começou a esbravejar. Estava então munido com os mesmos óculos escuros. Uma bronca atrás da outra no infeliz do outro lado do telefone móvel ( apreciava bastante a expressão do outro lado da linha. Hoje, superada) e a sala de espera fingindo que assistia ao jornal sanguinolento que apresenta fatos ocorridos na cidade sitiada. E ele resmungava e balançava a cabeça. Parecia que não concordava com nada do que lhe era dito. A mãe acaba de retornar do pré-exame onde se mede a pressão dos olhos, etc. Vinha balbuciando o nome do rabugento que imediatamente lhe adverte para ficar calada mediante um gesto brusco com a mão desocupada. Um grosseirão típico. Foi então que passei a confabular coisas.
Imaginei que o grosseirão estivesse morando com a senhora sua mãe e que essa ficara viúva faz pouco tempo. O pai, um senhor aposentado e com ganhos financeiros bem razoáveis, morreu de desgosto, já que o único filho ( o indiscreto falador em salas de espera) o roubara. Sabem como é.
O cidadão sacou que o pai tinha uma boa grana aplicada e outros dois imóveis alugados em ponto nobre da cidade e decidiu lhe propor uma sociedade, no mínimo estranha. Consegue na truculência a assinatura e procuração que precisa e desanda com seus quereres perversos. Pai morto, filho ainda pobre.
Nesse dia de ontem, foi diferente. Ele falava mais baixo e vestia-se pior. A senhora viúva, mãezinha dele, sai cabisbaixa do atendimento. Não diz nada. Ele tampouco.
Do lado contrário do balcão recepção, percebo movimentos mais discretos e suaves por parte do 'casal'. Ela está sozinha. Está há muito tempo, desejo crer. Ele nasceu assim. Algum golpe não funcionou mais. Como deve estar a vida na casa daquela senhora que por anos lhe impunha alguma repressão, muitas vezes, necessária? Será que ele leva prostitutas para dentro de casa? Conheci uma autoridade policial que transava com senhoritas que buscam independência financeira breve, na varanda do apartamento, avenida movimentadíssima da Copacabana de sempre, andar alto, e a pobre da mãe - moravam juntos mãe e filho também- dormindo no quarto ao lado. Qual seria o tesão? No caso desse último taradinho, a mãe vinha até a sala e lhe perguntava algo. Algumas vezes foi um gemido que se propôs a responder. Mãe resiliente, retornava para o lugar de onde não deveria ter saído. Seu apelido nas conversas de boteco sem papas na língua e freio de mão era -quanta maldade com a senhora vossa mãe-, Mrs. Magoo. Lembram do personagem e sua quase cegueira? Pois não é que arrumou uma namorada!?
Dentro da sala do pré exame estão, agora, os meus olhos. Falando mais francamente, estavam. Pois agora já foi ontem. Quando iniciou o procedimento, a senhorita que comanda o espetáculo o interrompe. Levanta-se e pede para que eu afaste o queixo do aparelho. Cuidadosa, passa um pano com álcool no lugar para em seguida secá-lo:
'Muita maquilagem.- Disse.
Mas de quem?- perguntei intrigado.
'Nunca se sabe. Mas acho que era um pouco dele também.- Emendou sem piscar.'
Nada de ponto de vista cansado com essa turma.
O 'casal' segue feliz e tentando enxergar.
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