Roberto surgiu. Alto, imponente. Era uma presença naquele bar Sempre no mesmo horário e dia. Domingo à noite. Justo no famigerado Domingo, à noite.
Domingo à noite, portanto, para tantos e a mim também ressoava certa melancolia. Trata-se de um dia santo nesse país tropical e cristão. Nos tempos de infância, quase tudo cerrava as portas. Não se via aquele padeiro, aquela madame perfumada. A oficina e o seu perfume de graxas. Tudo muito curioso, justo porque num país superpopuloso, logo, sempre disposto para oportunidades, pois está permanentemente em crise, e que decide morrer no sétimo dia. E o que se faz? Assiste-se ao futebol, na sequência, em que se assistiu à missa. Hoje em dia, colocaram o futebol no mesmo horário de algumas missas. Quando havia o Maracanã e seus artistas verdadeiros, jogava-se um dia de glória. Ao menos para uma criança bastante interessada.
O abominável sétimo dia antecipava o primeiro dia da semana e dos horrores semanais, após aquela derradeira música e coreografia típica, geralmente inclinada à cafonice, dos programas dominicais. Eis que emergia então aquela ordem imperativa: ' Hora de dormir'. Mandava-se a pobre criatura para o quarto escuro. Era o mesmo que mandar alguém para a puta que lhe pariu. E nunca se revelava onde se esconde essa senhora: a tal da puta que alguma coisa pariu. Para mim, a mensagem decodificada sob forma de ordenação indicava um compromisso vital para o dia seguinte . E também o era. Mas.... Êta troço e maneiras mais opressivas. Detestava aquilo tudo. E não havia espaço para maiores conversas. É assim e ponto!
A maldita da sala de aula para um eu-pequeno - desses sem a menor autonomia e assujeitado às vontades dos outros maiores- era uma assombração.Igual às histórias infantis. E o uniforme? Nos períodos autoritários, o cidadão sem maiores mediações ou poderes permanecia com seus direitos à reboque de baionetas surdas. Fingimos que aderimos à máxima - quase um axioma minimalista, elegante:"Manda quem pode. Obedece quem tem juízo". De fato, com o acréscimo dos cabelos grisalhos ou a falta deles, reconhece-se que se trata de uma orientação para vida toda. Mas não exageremos na dose do veneno, pois pode retardar o processo de crescimento. Qualquer crescimento.
Tantas são as possibilidades, tantos talentos possíveis para emergir e essa burocracia reacionária a atrapalhar. Um calendário gregoriano, necessário feito bússola, para ajuizados ou não, mas que pode muito bem ser relativizado.Ignorar suas amarras, seus festejos cada vez mais enfadonhos e quase sempre imperativos, feito a ordem materna, aos Domingos, e que não cessam de ser tão somente Domingos. Ainda que a gravidade insista- para sempre- em nos puxar para baixo e o espaço acima da cabeça seja apelidado, equivocadamente, de céu. Morada para os crentes, alguns mitômanos gregos e seus seres alados.
Nenhum ato criativo - quanto mais um ato de criação que nos traz o novo, o quase impensável até agora- haverá, se por um outro acaso essas referências não forem dribladas, suspensas um pouco. De preferência, todo dia. Difícil, não? Dificílimo.
Tão difícil quanto lidar com a presença contundente de Roberto. Escorado pela sua inseparável mochila que abrigava os seus escritos e desenhos, postava-se no balcão do bar, sempre aos Domingos à noite. Naquela esquina do Leblon. Onde o passar das horas não prometia amanhã. As tais esquinas podem ser fascinantes. No caso das esquinas em porre...Ainda mais. São muitas as trombadas que se aglomeram. Por exemplo: e o vai e vem das pessoas que saem do cinema em frente? Fincado, majestoso, há décadas, no outro lado daquela mesma esquina. Um vai e vem, ou seja, uma transa. Depois e daquele escurinho com pipocas.
Obsessivamente, exatos trinta minutos após a despedida final do apresentador de um programa nada 'Fantástico'- mas também provisória essa despedida , visto que ele retorna, não ao mesmo lugar , mas ao mesmo canal, faz mais de 30 anos-, esse engenheiro aposentado de repartições, mas repleto de invenções, e cuja carreira lhe rendeu promoções e comendas, atracava pesado. Era alto e robusto.
Um conhecido de nós dois nos fez conhecer um + o outro. Lembro-me da advertência que o mediador proferiu: ' Agora que você se aventura pelas investigações sobre o psiquismo humano, um prato repleto de diversidades - muitas bem estranhas, bem verdade, estão aqui para o seu dispor.' As palavras foram mais ou menos essas. Esse rapaz era bastante formal. Tomava cerveja sem álcool. O que era uma novidade naquele momento, mas sobretudo um alívio para um ex-alcoólatra. O quê ele mais gostava pra valer era poder sentir ainda a espuma cremosa banhando os seus lábios e apreciar a coloração da bebida sob a luz específica e que ficava no teto, no céu, daquele boteco. Irônico ( irônico?), virou-se para o lado e partiu. Não me lembro de tê-lo encontrado novamente. Ao menos, naquelas noite dominicais.
Jogo feito, banca forte. Como na canção. Qual foi o bicho que deu? Deu águia e a sua sorte. O alto e imponente era também simpatizante da Portela.
Iniciava-se uma camaradagem que duraria uns 10 anos mais ou menos. Foram muitos os Domingos e até mesmo alguns Sábados - quando por algum tropeço 'quântico', ele decidia mudar sua intocável rotina- permitindo-se uma deslocada para outros lados. Talvez tenha sido um dos homens mais cultos e inventivos que jamais conhecera. E também um dos mais paranoicos.
Uma paranoia, a bem dizer, que não era somente adjetiva - expressão de senso comum - , mas estrutural. Do ponto de vista nosológico. Relembrando que a nosologia é a área de pesquisa que classifica afecções, doenças. E temos de um tudo um pouco. Cada um. Antes de sair xingando o vizinho mais próximo, cuidado com o próprio quintal e seus dejetos, por vezes, mal cheirosos. E o responsável, muito provavelmente, não terá sido o cachorrinho daquela madame perfumada que não pode comprar aquele brioche, já que lhe fecharam portas na cara bem maquiada, nesses dias de alguma melancolia. E olhemos que ele, o cachorrinho, ainda é inimputável. Mas por pouco tempo. Em breve, haverá legislação e legisladores de quatro patas.
Roberto, o novo amigo, ficaria irritadíssimo com essa ladainha. Sua parana permitia somente a presença imperativa, superegóica, das formações que sustentavam as suas elucubrações. Não havia equivocação possível. Tropeço nem pensar. Só o quântico, eventural, acidental. Mesmo assim não era reconhecido por ele como tal. Esbanjava um riso, aflito, para tão logo mudar de tema. Tudo na sua fala e produção era muito, mas muito formatado- com seriação e lógica bem pertinentes-. Tudo inclusive foi testemunhado por várias pessoas e até instituições. Infernizava, por exemplo, a redação do Jornal do Brasil ( Jornal do Brasil foi um jornal que existiu brilhantemente no país tropical e cristão) , afirmando que muitas das matérias ali publicadas eram de sua autoria. Reclamava também pela não publicação de seus inúmeros desenhos ( tinha um traço excelente) ou cartas que tinham sido enviadas, por ele mesmo, ao periódico. Eram dezenas delas. O editor, furioso, chegou a lhe sugerir se não estava disposto a fazer uma proposta de compra aos donos do jornal. Assim, teria a seção de cartas ao seu dispor. Além da capa, a contracapa , mais o caderno B ( Que saudades do caderno B!) , o caderno de esportes, o caderno Ideias. Imaginem o Roberto se apossando dos classificados de anúncios? Seria ao mesmo tempo anunciante/anunciado. Onipresente. E ele achava que não tinha cacoetes religiosos...Atormentou também a assessoria de um primo famoso e que presidiu, no Governo de José Sarney, o Senado Federal.
Inventor de apetrechos adoráveis , tais como aquela outra mochila enorme que abrigava um guarda sol/guarda-chuva e que possuía um dispositivo automático que não o deixava na mão. Um leve toque num botão bastante acessível e ele se abria. Testemunhei o fato, numa tarde ensolarada, em plena praia. As pessoas de sungas e fios dentais gargalhavam diante do fato. Ele prosseguia impávido, solitário.
Uma cadeira automática e com rodinhas de poliuretano - para não arranhar o piso do apto lebloniano e que pertencia ao único irmão- fazia-lhe companhia , sobretudo, nas madrugadas. Ele a inventara. 'Por que não tenta patentear suas criações? Poderia lhe render um bom dinheiro?'- insisti. 'Não tenho paciência para lidar com esse tipo de negociata'- respondeu com certo desprezo. Justo aquele Roberto marxista e que vivia no imóvel do irmão afortunado. Nada mais marxista! Aquela esposa rica, aquele Engels carregador de piano e um Marcuse, mais sofisticado, para divulgar sua teoria. O irmão- creio que o único- era um executivo de sucesso, em São Paulo. Deixara, além do imóvel, um Opala, anos 80, para um passeio saudoso pela orla carioca quando por aqui desembarcasse. Restava ao irmão inventor ressuscitar o monstro mecânico, duas vezes por semana, girando uma chave, esquentando seu motor. Algo que de fato ele detestava, pois odiava os automóveis. Ainda que estacionados, inofensivos nessa posição. Só não os apedrejava publicamente- fazia isso nos desenhos e textos- porque mantinha as recordações dos tempos em que levava as deusas- suas ex-namoradas assim conclamadas- para a Barra da Tijuca ou para o Recreio dos Bandeirantes. Os 'monstros mecânicos ' serviam de abrigo para o namoro. Relembro a cena : seus grandes óculos bifocais vibrando de entusiasmo ao tagarelar pela milésima vez sobre as suas conquistas amorosas. Mãos trêmulas, lábios molhados: ' As deusas....As deusas!'- repetia em alegrias. Esquecia então de toda a praga que rogava diuturnamente aos automóveis e seus usuários.
Um outro alguém teria dito que o coração para tanta razão talvez viesse do fato, traumático, dele ter perdido uma dessas deusas num acidente entre carros e seus condutores. Vinha daí o horror, a rejeição. A parana também estava circulando por aí. Retirava a função, a materialidade, a ideia, o conceito da formação carro e enfiava umas articulações paranoicas na mente. O carro fazia diabruras; não os seus condutores.
Quando o ex-presidente Collor foi afastado, ele estava no bar. Ele e quase todos nós. Aliás, muitos entusiastas naquele momento e que agora... Deixa para lá. Alguns bilhões não valem uma abominável Fiat Elba, nem tampouco um chafariz em casa de dindas.
Creio que alguma coisa por aqui passou a escutar o silêncio da própria imprudência. Quero dizer: da minha própria imprudência. Escutar e calá-la. Deixar comichões em suspensão e à espreita. Deixar a conversa fluir- por mais louca que parecesse ( e era mesmo) - e somente perguntar, sorrir sem razão. Sorriso de bem vindo. Eventualmente, posicionar-se com mais firmeza. Caso contrário, não haveria amizade alguma. Ele tinha mais maluquices supostas que muitos de nós, mas não era burro. Pelo contrário. Tinha desprezo por burrices a mais.
Uma noite, e que não se chamava de Domingo, olhei para o lado e o vi. Fazia alguns anos. Sentado, não mais encostado. Frágil. Não mais imponente. Nem mochila, nem apetrechos criativos.Um jovem rapaz lhe fazia companhia. Vestia branco, esse mancebo. Seria um filho de santo? Pálido, bem mais magro esse novo Roberto.
Aproximei-me. Falei com o rapaz que observou a minha aproximação. Atento, malandro.Parecia um bichano acuado, mas com alguma armadilha preparada. Apresentei-me. O rapaz respondeu avisando: 'Dr. Roberto. Seu amigo, fulano de tal'. Nessa hora, eu já esperava pelo pior. A cabeça virou um pouco para trás; um pouco para o lado. Não eram mais os mesmos óculos, apesar de idênticos. Aquele olhar-óculos estava num outro canto. Estaria maquinando invencionices? Confabulando contra o editor de algum jornal que não publicava mais as suas cartas-desenhos? Teria se desiludido com alguma das deusas? Ele adorava as meninas campeãs do vôlei. Perseguia algumas delas- nas tardes da falecida lanchonete 'Chaika', Ipanema-, com cavalheirismo e uma rosa nas mãos. E é claro: com seus textos-desenhos. Que quase ninguém entendia. Além de uma confusão bem particular, havia uma erudição em jogo. A banca do engenheiro trazia expressões em Latin e até em grego.
Não.Aquela não-expressão no rosto do amigo intelectual trouxe o meu pai e a sua enfermidade - faz dez anos que ele padece com uma demência senil- para o Leblon e aquele instante triste. Estava feito. Ele era realmente um outro. Tão somente e solitariamente, o inventor sorriu e fez um aceno. Éramos de novo estranhos. 'Muito prazer'. 'Muito prazer?' Faltou dizer.
Roberto Frageli morreu em Janeiro de 2010, aos oitenta e poucos anos. Fui atrás da informação na central nacional de óbitos ou coisa mórbida semelhante, porque já tinha escutado diversas versões sobre o seu fim ou não. Houve quem dissesse que ele estava bem e que o tal rapaz que o acompanhava (uma especie de enfermeiro) manipulava seus remédios, fazia-lhe umas maldades. Contudo, há controvérsias sobre essa maledicência toda.
Coube à amiga e companheira de longas jornadas decidir por relembrar o Roberto em comum, numa prosa internética, dizendo acreditar que ele não estava mais no pedaço ou fincado em qualquer outra esquina. E ele a adorava. Era mais uma deusa da sua lista. -'E com aquela voz'!! - exaltava.
Decidi, portanto, desse outro modo internético, por um ponto final nessa história. Foi um prazer, amigo.
2 comentários:
to aos prantos aqui, lembrando da altivez do Roberto, do jeito dele falar das deusas, salivando, dos seus olhos quase loucos a rodar nas órbitas, da nossa improvável amizade. ele com 60, a gente com 20, ou algo assim, né? Que emoção lembrar disso tudo, com trilha sonora, lembrando de sonhos que envelhecem, sim. Uma hora dessas, seremos nós. tomara que alguém escreva uma crônica carinhosa e cheia de respeito e lembranças boas, como essa que vc escreveu. ÇPronto! vc deu a ela a imortalidade que seus inventos não deram. Que lindo! beijo carinhoso
Obrigado pra gente. Bjs!!! Você trouxe esse texto.
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