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domingo, 10 de maio de 2015

Certas meninas do andar mais acima. Confusão de gozos.

- Alguma coisa vai mal? Está doente?
- Um troço chamado bursite. Foi o que o doutor falou no hospital. Dói pra burro.
Bursite. Até o presente momento, uma inflamação- a grosso modo- dos chamados tecidos moles e que compromete articulações. Essa bursa, e não 'buça', é uma pequena bolsa repleta de líquido, localizada na junção onde músculos e tendões transam mal com os ossos. Somos um fóssil que resmunga. Confundida muitas vezes com artrites, artroses e outras doenças articulares, a tal inflamação da bursa pode ser bem traiçoeira. A dor pode ser intensa e irradia na maioria das situações nos braços. Por isso, confunde-se com a dor no coração que falha. O maldito infarto do miocárdio.
Ano de 1999, dois anos após a morte do jornalista e figura pensante, Paulo Francis, em Nova Iorque. Erro de diagnóstico no caso de Francis porque ele também supunha sofrer de bursite.
Madrugada, como de costume para um notívago que se esforça por mudanças, atravessando o corredor - um caminho necessário para se chegar às duas entradas possíveis do edifício- as atenções não se fixaram naquela resposta sofrida, dolorida, de quem transforma uma imensa dor em sujeito da sua existência. As atenções se interessavam, sim, pela sacanagem que atravessava as noite e fins de tarde provenientes de algum andar bem mais acima, nos últimos meses. Essa suposição ganhava certezas porque os imóveis mais próximos não eram ocupados por figuras tão animadas. Descobre-se então que um elemento alugara um apartamento para instalar ali a sua produtora de filmes pornográficos. E a tal produção exigia protagonistas bem jovens. Nesse caso, todas eram meninas. E pelo desenrolar da história, eram menores de idade. Certo mestre, sábio em sua existência, já fez a devida distinção entre pornografia e erotismo. Indagado pela curiosidade de todos, respondeu que o erotismo vem a ser uma espécie de pornografia dos babacas enquanto que a pornografia se manifestaria como um erotismo de tarados.
Portanto, durante meses, o balançar dos quadris daquelas delícias joviais ( Shi! Não se pode dizer isso em épocas de malafaias e manifestações jurássicas), rejuvenesceu o prédio. Havia um frescor diferente no ar. As protagonistas deviam oscilar entre os 15 e 17 anos de idade e entravam felicíssimas pelo prédio a dentro. E de acordo com o dono da portaria- aquele que lutava contra uma suposta bursite-  saíam do mesmo modo, ou seja: alegres, descontráidas, balançando as cabeleiras de um lado para o outro e tendo sempre nas mãos- agora desocupadas- um envelope. Curioso, ele observava o envelope ser entregue a diferentes mulheres que aguardavam as diversas moças, na esquina mais próxima da nossa rua. Uma de cada vez para não despertar outras atenções. E elas sempre estavam por lá. Uma pontualidade difícil de se ver em outras atividades. Não era ' em torno de' ou 'around seven o'clock', o tal acerto com os ponteiros do relógio imaginado, como o é de costume no nosso balneário mais famoso do país. Postavam-se diante da lanchonete, patrimônio cultural do bairro, e lambiam sorvetes durante o aguardo. Sem atraso nem tampouco algum esparramar de coisas precoces. De lambida em lambida, enfim, o encontro diário, semanal. O envelope finalmente mudava de dono e recebia colo materno.
De repente, a produção cinematográfica parou. Não se avistavam mais as beldades e nem se escutavam aqueles gemidos, sucedido de gritinhos. Ou teriam sido gritinhos e depois os gemidos? Essa ordem, aparentemente banal, pode alterar todo um roteiro de um bom filme.
Indaguei ao comandante da entrada e saída do novo cabaré- perdão, nosso prédio- a quantas andava o balançar dos belos e juvenis quadris, assim como a sonoplastia suspensa sem aviso prévio. Se aquele cineasta- e é quase certo que ele era o único protagonista macho das suas singulares produções- ao lado, ou por cima ou por baixo das suas estrelas- achavam que só existia exibicionismo por aqueles lados, esqueciam-se que ele não vale nada sem um voyeurismo participativo. Não existe um sem o outro.
' E o senhor, Mr. Bursite, ainda que lhe pese sobre todo o corpo, e não somente sobre algumas articulações, os seus setenta anos, tentando assustar-me ( Só porque me conhece desde pequeno) postando-se com ares de não afetado, mediante esse repentino silêncio, somado a essa entrada/saída de edifício falso moralista e deserta de formosuras'!- manifestei minha indignação. Ele me tranquilizou ao dizer que um dia me contaria, pois o 'coisa ruim' ainda restava no imóvel. Considerei essa expressão definidora/definitiva do seu olhar sobre o  nosso  vizinho , por suposto nada discreto, mas cordato em outros momentos, um tanto forçada e pouco elegante. É certo que jamais o encontrei ( Seria incorreto solicitar-lhe um autógrafo se acaso esbarrássemos um sobre o outro e coisa e tal, no elevador? Social?); Mas podemos até assegurar que esse Sr. Coisa Ruim,  caso a carreira alavanque outros patamares e possibilidades, brindou-nos com aquela bela passarela de cidadania. Afinal, era um frescor sazonal no meio das antiguidades.
Uma outra madrugada e o automóvel de volta para casa. Diante do prédio, entrada/saída, onde se concebe também a palavra garagem, um automóvel oficial - desses que podem parar, revistar, atirar e até matar os outros, ainda que co-irmãos de um Ford Bigode tão distante e tão presente na estética vigente -, estacionava as quatro patas diante do único caminho necessário e disponível para o repouso habitual. Suas portas se abriram e um cidadão, pouco simpático, aproximou-se. Exigiu identificação de ambos: do cidadão e da criatura metálica. Por último, perguntou ao nosso indescritível senhor das entradas e saídas se realmente eu era quem dizia ser. 'Acho que sim'- respondeu com expressão de sacanagens. Mas como assim, 'Acho que sim'? Se não me dá seu testemunho como hei de garantir que sou quem penso ser? Logo você que esbarra comigo faz tanto tempo? E no início da nossa transa, apenas um engatinhava. Ah! Sabemos onde a coisa pega. No futebol nosso de cada temporada. Estou equivocado? Sua estrela solitária não anda te conduzindo muito bem, não é mesmo? Já o meu brinquedo vestido de vermelho e negro ( Romance francês?) trouxe-me de volta sem maiores sequelas. E só me resta a sua nobre consideração para que eu adentre feliz, alegre, descontraído, o prédio que compartilho, até mesmo, com essa vizinhança toda que não encontro. Que nunca vi.
Ufa. Isso, 'ufa', que dizer que conseguimos então? Penetramos o edifício? Sim, mas a polícia também veio, por sua vez, e partiu sem o moço que produzia filmes libidinosos de grande intensidade. Um pouco antes, fraçãozinha de segundo, escapara das garras 'inimigas'. Interessante, não é mesmo? Madrugada ainda rolando e ele, feito um demiurgo ou adivinho, conseguiu antever a chegada dos amigos de cassetete. Realmente era uma figura notável, o vizinho assombrado. Imaginem que nesse show da vida, num domingo à noite e após alguns meses, jornalistas reveleram seu segredo e sem nenhuma descrição, tal qualmente a postura do ator/produtor . Foi a televisão e sua produção veterana que avisa que o 'Coisa Ruim' era filho de um ex-deputado federal de um estado bem mais ao norte. Foi extraditado ou teria sido preso ao desembarcar de regresso, por aqui, nos brasis. Tinha uma ficha de perversõezinhas enorme. E a gente a confabular que a sua grandeza talvez viesse, bem vinda, de outras partes mais abaixo, de outras formações.
Nunca mais soubemos desse tipo, nem ao menos daquelas moças de outrora, tampouco sobre aquele cuidado familiar. Mães zelosas e preocupadas com o futuro da cria. No que o extraditado não pagou pelo preço combinado, bocas de Matilde vociferaram por justiça. Ele teve que se escafeder.
Quem disse que cidadania dessa ordem não se exerce? As meninas fizeram exame de corpo de delito e tudo mais, após adentraram não tão felizes, descontraídas e alegres a delegacia. Comoveram delegados e escrivães. Quase convocaram passeatas, via grande rede, se por acaso existisse tal praticagem. Não havia.
Por que não se consegue escrever sobre memórias e ao mesmo tempo incluir uma sonoplastia feito aquela magia editada no escurinho do cinema? Acho que o gozo maior seria escrever historinhas para uma tela grande. Mas a pretensão e a arrogância são marcas difíceis de apagar- tem que se lutar bravamente, quase um jiu jitsu mental-; e a pretensa intenção- malvada de inferno e outros paraísos- vislumbra desde o começo o tapete vermelho e um Coppola, talvez  um Almódovar,  a lhe conferir atenções. Infantilismos podem restar para sempre.
Volta-se , alguns dias após toda esse cenário descrito e desgustado acima, de um 'Réquiem para um Sonho' estadunidense impactante ( e que não foi produzido nem por Francis ou Pedro) onde seu mentor dedica- nos créditos finais-  esse filme a sua mamãe. Quem não viu, verá. É possível. Foi no Cine Paissandu, no bairro do Flamengo. O cinema também não existe mais. Avisaram sobre uma possível reabertura. Teria sido reaberto ou nunca saberemos?
Cortina que sobe, não só no teatro burguês, e chega-se em casa novamente. Fato:vive-se de retorno. Voltamos antes para voltar de novo. A frase que iniciou essa conversa , repete-se. ' E aí, melhorou?'  Aquele senhor grisalho mexeu um pouco os lábios ao mesmo tempo em que a  cabeça se movia preguiçosa para um lado que parecia dizer NÃO! Subo através daquele caixote de subir e descer claustrofobias. Porém,  uma confusão de sensações restam para trás.
Seria hora de dormir? Pesadelo ajuda no sono profundo? O sono dizendo adeus, o dia seguinte indicava trabalho por vir. Janela aberta pela noite quente, lua animando os casais feito a letra da canção. Um silêncio. Todavia, lá no fundo, um barulhinho ( Enfeitar frase também é importante, porque parece que vinha do alto, vinha do mundo o tal barulhinho) . Era um gemido que crescia em intenesidades. Pensei então: 'Voltaram. Estão de novo na maior sacanagem'. Durou menos que o suficiente aquele tipo de gozo. A ponto de esquecê-lo forçosamente. Teria sido inveja? Teria conseguido uma surdez voluntária?
Na manhã seguinte, carro apontando no portão do prédio e os outros três comandantes da entrada e saída estavam cabisbaixos, abatidos. Algo inédito, visto que o silêncio e a discrição não compunham os respectivos currículos. Sobretudo, quando estão juntos. Indaguei o que se passava e a resposta não nos poupava o impacto. O real se apresentando sem intermediários. O real destrói neuras. Ele vai direto ao ponto: 'Antônio, o nosso vigia noturno. 'O que houve?'-já estava aflito. 'Ele morreu de madrugada. Teve um infarto fulminante'. Antônio agora tem nome e função. E ele não estará presente nessa consideração Mas não era bursite? O que ele tinha? Acabou.
Era uma vez um homem de setenta anos que dera grande parte da vida a cuidar das entradas e saídas desse prédio batizado com nome de mulher desconhecida, desde a sua fundação. Como se pode notar, vizinhos que não se encontram e nomeações desconhecidas. Aquele gemido não era gozo de roça roça, esfrega esfrega, pau na xeta ou promessas de futuro em Hollywood, Bollywood ou Mimosa Villagewood. Era o derradeiro gozo à beira da  morte que não há. Era o gozo capenga, dolorido, sangrento, entupido, de um coração valente que pifou de vez. Explodiu justo na madrugada. Logo ela que me faz companhia, feito uma ninfa, de vida inteira.
Mas então esse gemido que se acreditava vir de cima e parece que veio por baixo?
Há uma garagem no final daquele caminho necessário, com a sua lua e um dedo incauto a lhe apontar o teto que não está. Esse céu desnudo que virou teto, abrigo. Por sua vez, as paredes laterais cercam aquele espaço, preservam território, mas resta o vento, resta o resto. E ela- isso tudo que  se chama de garagem- escancara algumas das suas partes que compõe o seu patrimônio de veículos. É aquele emaranhado de ferro mesclado com alumínio e mais borracha com plástico ou algum sonho conquistado. Pois foi por ali que o maldito barulho se propagou. A confundir luxúria com penúria.
Um corredor que perde o seu comandante primeiro atinge a garagem sem qualquer mediação . Confusão de ruídos que transam sem escrúpulos. Estão mais para pornográficos do que eróticos. Não, não era uma crise de bursite.

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