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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O futebol e um pai. Uma noite de pelada.

Noite gelada com a garoa paulistana e o Ataliba, ponta direita do Juventus, clube de cepa italiana do também italiano bairro do Bexiga, na capital do Estado soberano, entrará em campo. O Juventus é chamado pelos seus destemidos admiradores ( hoje  seriam seguidores?), e cujo sado-masoquismo é exemplar, de 'O Moleque Travesso'. Tudo por causa das travessuras que costuma aprontar para os adversários mais poderosos, ricos, tradicionais e, curiosamente, populares. Isso mesmo. No país da fartura, os times que costumam triunfar são os mais populares. Os times que conquistam os títulos são os que seduzem a maior parte da platéia. E essa titulação torna-se um caminho sem volta. Conquistou, recebeu o diploma, no caso o troféu, está conquistado. Portanto, as equipes mais modestas, menos poderosas, costumam ser desprezadas. E tem gente que ainda crê na fidedignidade de um voto de pobreza, por exemplo. Mas qual ? De que pobreza falamos? No futebol, não funciona muito. Agora mesmo um mancebo, que arrancara as amígdalas infectadas, fugiu para exibir seus dotes de boleiro bom de bola na estranja. Declarou que desde muito pequenino sonhara em jogar no time mais famoso da Catalunha - que vem a ser aquela região européia e que também tem os seus sonhos, no caso específico, uma separação litigiosa do resto do que chamam de Espanha-, ao invés de sustentar o onírico tesão em jogar no próprio time brasileiro que o fez atleta de alto nível e pelo qual conquistou títulos internacionais e à seleção canarinho chegou. Esse clube paulista, bronzeado pelo porto famoso,  faz-se aristocrático, visto que abrigou um rei e  uma corte inteira. Tendo sido o clube mais vitorioso do futebol nacional e mundial, à época. Acontece também que naquele período não havia internet, facebooks, satélites poderosos, enfim, essa disponibilidade para se  conectar com o resto do mundo todo, formando uma rede global imensurável. Esse mundo que se avizinhou um bocadinho mais. Em compensação, havia futebol de alto nível. Uma distância enorme para o nível das peladas hojendía. Contudo, e com tudo isso, mas apesar disso, o jovem não se fez cooptar pela trajetória da instituição centenária. Preferiu se mandar.
E essa distância também se apresenta no tal ritmo com que a bola rola na cadência do artista que a empurra para frente, para o lado, até mesmo para trás. E há de se ter cuidado já que existe a tática do fogo amigo: o gol contra. O futebol parece acelerar no compasso dos bits e q-bits quânticos. E as pernas desajeitadas não acertam o passo. Os mais hábeis sobrevivem e faturam.  Futebol mais cadenciado é coisa artesanal, advertem especialistas. A correria é que dá o ritmo do desacerto e do descompasso. Feito cotidiano de cidade grande. Reparem no vai e vem - não dos quadris abençoados das mulheres- mas no trânsito debilóide das ruas e que evidencia o nível de falta de civilidade daquelas pernas mecânicas e seus robôs falantes. 
Que não se pense que esses algoritmos teclados, digitados aqui e agora, sejam ressentimentos saudosistas nem tampouco aquele papo de que foi melhor assim ou do outro jeito, naquele tempo lá para trás É tão somente uma falação de quem para frente, vez e sempre, espanta-se ao enxergar que para lá existe aquele jogador, aquela jogada à beira do abismo avizinhando-se. Gingando feito Mané e suas habilidosas pernas tortas sem a menor cerimônia. Invasão sem reversão. E é quase impossível não se afetar pela abominável saudade. O andamento do jogo tem essa conotação meio trágica, isto é, não é possível começar do zero. Não há não inscrição ou tábula rasa no nosso jogo humano. Não dá para afirmar que a pelada que já começara - e começou faz muito tempo- não começou, não houve. Passar o filme ao contrário, fingindo que a cena mais triste não fora triste assim. Pode-se apagar ( esquecer na lembrança), mas a sua havência enquanto cena , fato triste, será impossível de apagar supondo que não houve então. O quê? Um fato chamado triste. Seria injusto?!Vociferou alguém contra o árbitro do jogo. Queremos justiça! Mas qual? E o árbitro está de preto ou tem uma auréola encantada a lhe enfeitar a existência? Teria carnaval? No reino do Rei Pelé havia folia de sobra.
Será que o expectador na sua tentativa juvenil, pois iludida, em mudar o resultado do que não tem mais jeito de ser jogado, esqueceu das possíveis estratégias traçadas? Da regra do jogo?. Aquele acabou. Agora, partiremos para outros possíveis.
Quando naquela noite gelada da capital paulistana, meu pai e eu, contemplávamos Ataliba e seus comparsas atacarem uma Ponte Preta , num Pacaembu Machadista, o que se via? Estávamos abrigados pelas capas plásticas e pelo calor que os torcedores do time do Rei (Eram  ao menos dez mil torcedores vindos da baixada santista), a desejar o pior para o moleque travesso, cepa italiana, Ataliba a comandar sua guarda pretoriana. Nesse finalzinho dos anos 70, governo de João Valentão Figueiredo ( 'Eu prendo, arrebento') , os campeonatos de peladas no Brasil implicavam com as imposições gregorianas e o seu tempo, o seu calendário opressivo. O Paulistão de 1978, por exemplo, terminou no meio do ano de 1979! E assim adiante. Nesse torneio, O Santos F.C precisava que o moleque travesso não cometesse diabruras contra a Ponte campinense. A Ponte não tinha mais chances no campeonato e o Juventus poderia adiar o sonho do ainda não nascido, Neymar JR, em conquistar um troféu importante, após a era Pelé. Ataliba e sua correria e destreza poderiam ser empecilhos determinantes. A torcida juventina cabia nas tribunas sociais. O resto era preto e branco com ares de aristocracia em busca do trono fugidio. Conseguiram. A Ponte desportiva venceu e Ataliba chorou a lágrima sem volta. Mas não se deu tão mal assim. Foi contratado pelos Gaviões e sua Fidelidade, no ano seguinte, e por lá ganhou prestígio, dinheiro e titulações em forma de troféus. Fez parte da nobre geração do rei da dialética e seus calcanhares desconcertantes de um outro grego célebre, O Aquiles, e que platonicamente defendia democracias contra o tal João, cada vez menos valentão: O Dr. Sócrates.
Apito final. O resultado agrada aos dez mil abnegados torcedores que não se importaram com a garoa persistente e a temperatura que despenca nesse  pré-início de inverno. E o inverno era frio nessa época, pasmem. Orientava melhor a carcaça e suas vicissitudes. Mesmo que  Sampa conserve o hábito secular de transitar por diversas temperaturas e variados climas ao longo de um mesmo dia, durante o inverno havia frio.
Gazeta esportiva nas mãos, fim de jogo, carrocinha com lanche na esquina à espreita, rádio de pilha e os comentários sobre um outro jogo a tagarelar pelas ondas do tal aparelho radiofônico.  Mas seria realmente um outro jogo na fala dos doutos comentaristas? Claro, que sim. Afinal, cada jogo, um jogo. Nelson Rodrigues já defendia a causa até para se preservar das críticas  sobre a sua notória miopia. João, esse sim valentão, Saldanha , preservava-se por sua vez dos torpedos que lhe eram endereçados  mediante a sua fama de mitômano. Eram dois jogos nas tardes de Domingo do Maracanã. Aqui já entramos na ponte aérea da licença poética chamada digressão. Logo, havia o teatro de Nelson e a guerra do João Valentão.  
Um pergunta, antes da prorrogação e dos pênaltis para o jogo que virá , ecoa pelas marquises da alma.Quem sabe um singelo esclarecimento tático? O porquê  dessa rememoração esportiva tão específica, tão nítida, na retina das lembranças?
Talvez para evocar, reviver, um tipo de pai, quase herói, e que se banhara em águas de garoa gélida tendo ao seu lado o filho que torcia candidamente: por ele.

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