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domingo, 21 de novembro de 2010

Um anjo revelador

"O anjo exterminador" de Luís Buñuel é uma beleza de fotografia do que a nossa tão prezada neura de cada dia engendra,produz,multiplica.Multiplicai-vos, ó Cordeiros de Deus!!
E eles se multiplicam e invadem o edifício sagrado onde pastam seus súditos.Essa é a cena final do filme que fora lançado no início dos anos sessenta.
Buñuel genialmente, assim como alguns dos chamados surrealistas importantes, retrata com sutileza ímpar a nossa paralisia cerebral.
Tudo se passa numa festa ,da alta burguesia,onde se encontram importantes figuras com diferentes atividades profissionais.Por profissão leia-se também aquela senhora que organiza jantares, aquele vagabundo profissional que cafetiza a própria irmã ( o tesão dela por ele é visível) dentre outros egrégios cidadãos.
Jantam divinamente.Os empregados, movidos por uma ansiedade curiosa, saem bem antes da festa acabar, exceto um: aquele que vos serve.A bebida cara e preciosa continua a circular e as seduções e provocações ditam o ritmo do baile.
De repente, alguém toca uma bela música no piano branco e a partir daí todos são reféns uns dos outros e de si mesmos.Na verdade, sempre estiveram reféns.
Recusam-se a sair alegando não conseguir.Passam-se dias,semanas e a degradação e muito do comportamento animal que nos compete emerge: assassinato, traições,conspirações, roubo...Também existem os mais nobres,apesar de raros, tais como a consideração, a generosidade,....E emerge ali,naquele belo salão ,daquela bela casa, com aqueles convivas ,alguns até eruditos.
E porque não saem da casa? Da mesma forma como entraram,ou seja, por aquela imensa e bela porta principal ou até - mesmo que isso custasse uma certa ferida narcísica para gente tão ilustre- pela porta dos fundos?
O culpado passa a ser o dono da casa ,afinal, quem mandou convidar para aquele teatro efetivo aquele bando de animais?O sujeito é um cavalheiro e corno também o é ( Na verdade está ,já que o filme um dia acaba).Sua digníssima senhora mantém um romance com amigo bem próximo.
É mais ou menos o que ocorre numa análise ,onde o analista é sempre o culpado pelo analisando estar em análise.Ele só se esquece, ele ,o analisando, que foi ele mesmo quem procurou o analista.
De onde não se quer sair?Por que tanta recusa?
A exemplaridade do filme é relembrar que estamos condenados a uma não saída radical.O simples fato de buscarmos o que não há e nunca haverá - chamemos isso de transcendência , Nirvana, Paz Absoluta,Gozo Absoluto,completude, etc - nos prende às ferragens do haver. Porém, ali a descrição é também a da baixaria dos vínculos afetivos, da recusa em deslocar alguns comportamentos, hábitos, conceitos, enfim , de sair do lugar em que se pasta faz tempo.Por isso a presença daqueles animaizinhos no "casting".
Ele encerra o filme repetindo o aprisionamento ,dessa vez após uma missa ,numa igreja católica.
A igreja,qualquer uma, certamente é uma formação extremamente recalcante,opressiva ,reacionária,mas não há imperativo algum, ao menos no Ocidente em tempos pós inquisições, que faça com que não se possa dizer não a tudo de nefasto que ela apregoa e mudar de partido.
Quem faz aquele bando de gente rememorar a posição em que se encontrava ,antes da paralisia, após a bela música tocada no piano ,daquela bela casa,daquele belo jantar,daqueles convidados , foi a moça que ,segundo as boas falas, era virgem.Intocada em certo ponto,mas não é daquele pontinho embaixo que se trata, ela pode se distanciar um pouco da estupidez vigente e apontar uma saída.Ela na verdade não era virgem, ela era tão somente e solitariamente alguém mais disponível para olhar o que não se queria ver, a tal obviedade.Recalque demais estupidifica,paralisa, adoece,mata.Não produz,por exemplo, uma obra como a de Buñuel.
Então uma virgem que transa diz: quanto mais cedo inicio um processo de análise mais portas se oferecerão ao meu périplo de retornar sempre para dentro e para dentro e para dentro.Logo, tornei-me uma saída.

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