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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Invasor de sonhos- um bicho papão chamado Eduardo Coutinho.

Há pouco mais de 10 anos, invadimos um edifício residencial de Copacabana. Entramos por uma sala escura. Grande coisa, teria pensado um leitor impaciente. Daqueles que conseguem agir pior do que censores. Uns ressentidos com faca nos dentes à espera da destruição. Mas por estar no plural e bem acompanhado, a curiosidade se amplia. Nesse caso, seria uma implosão.
O edifício fica numa rua bastante movimentada de Copacabana. Talvez o bairro mais famoso do país no exterior. Aqui, no Rio, entre os nossos conterrâneos, se não fosse o evento espetaculoso de réveillon e seus buscapés iluminados, a princesinha do mar, como fora agraciada, não goza há tempos de muito prestígio. Sustenta-se na fama de um hotel palaciano, de uma praia linda, nas curvas travessas do escritório praiano de Niemeyer, das putas que se escondem embaixo dos postes da principal avenida, do sanduíche com status de restaurante fino nas mesmas imediações das putas, dos seus outros puteiros, do Bairro Peixoto que mais parece uma cidade do interior e seus idosos jogadores de damas, dos craques bronzeados de charme a jogar bola no seu gramado pintado de areia, enfim, Copacabana. Um lugar singular. Podemos então afirmar: CopaBacana é do cacete!
 E foi com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão- herança de um Glauber- que o paulistano Eduardo Coutinho, recém falecido diretor de cinema brasileiro- portanto um herói nacional- fez-se anfitrião e convidou a todos os que estivessem dispostos a invadir juntos o tal edifício residencial veterano, Master, habitado por uma classe média sem grana, decadente, e não menos heroica.
Eduardo se consagrou como um dos principais documentaristas mundiais e recentemente fora nomeado pelo comitê de jurados lá da Academia que entrega o prêmio que tem nome de gente, Oscar, para fazer parte do time. Uma honra para quem só ficou conhecido por uma parcela maior de espectadores a partir do seu corajoso e brilhante " Cabra marcado para morrer", 1984,  iniciado 20 anos antes, mas censurado pela turma que com facas afiadíssimas nos dentes arrebentou com o país por 30 anos.
Através da sala escura, a invasão tem início pelo elevador social- alguém faz questão de titular assim- juntamente com o cineasta, a sua rouquidão de voz inconfundível  e sua diligente equipe. Ah, os elevadores! Essas dores que sobem e descem forçando intimidades. Aquela proximidade de corpos vizinhos e que mal se conhecem. Uma saudação quando se chega e uma outra quando se vai. Olá, bom dia, boa noite, boa tarde, como vai ( essa já traz assanhamento por intimidades a mais) . Adeus ( a quem corrija para Há- Deus) e por aí prossegue o vai e vem, o sobe e desce sexual de uma vida elevador. Há  também os catequéticos que afirmam suas vontades: ' Que dia lindo, não? ' Não. Não acho nenhum dia lindo, lindo. Goethe poetizara que dias lindos são o que há de mais enfadonho. Ao menos uma sucessão deles podem nos deixar um bocadinho mais entristecidos.
Percebe-se a difícil tarefa que alguém que decide por penetrar edifícios, residências e vidas outras terá pela frente.
Ele perpassou por vários andares e vidas. Desde a religiosa pudica - há quem acredite- cruzando com mocinha que faz programas ( seria ela uma grande investidora dos mercados financeiros?) e que lhe diz através da mais verdadeira confissão que mentia muito. " Sou uma mentirosa verdadeira". Uma delícia isso. 
Havia outros personagens- seus principais atores e atrizes- que marcaram essa visita atrevida. Um oficial aposentado que conhecera e cantarolara com Frank Sinatra quando morou nos Estados Unidos. Um ex-jogador - que vi atuar pelo Flamengo no fim dos anos 70- Luís Paulo e que conta uma história que nos remete ao cinismo calhorda da cultura brazuca. O cidadão era técnico do time de Itaperuna - cidade situada ao norte do Estado do Rio e terra de uma ex-governatriz que traz péssimas recordações- e fazia um excelente trabalho. Numa batalha dos gramados contra o poderoso clube de cepa portuguesa do Rio de Janeiro - cujo presidente à época contava com grande prestígio político no ramo futebolístico-  o árbitro do jogo resolveu prestar uma ajuda ao grande clube que carrega o nome do navegador português, não menos grandioso. Roubou à vontade. Não se intimidou com as câmeras de televisão, rádios e as testemunhas presentes. Foi então que Luís Paulo e seu bigode invadiram- tema proposto- o campo de jogo. Tentou argumentar com o árbitro. " O senhor é um bom homem, mas está exagerando". O juiz não lhe deu ouvidos. Diante do fato perdido, arriou as calças e exibiu o que Gerald Thomas- diretor de teatro importante- fizera num teatro carioca numa montagem de Wagner: exibiu a Isolda branquinha. Também conhecida como bunda. Dizem que o diretor de teatro prometera para sessão seguinte - caso a plateia continuasse a lhe ofertar vaias após o espetáculo- exibir o Tristão. Não sabemos se a promessa foi cumprida por Thomas, mas o então técnico de time de bola teve a carreira praticamente encerrada. Uma bunda e nada mais. Na terra, no Estado, onde exibicionismo de corpos, da casca, ditam futuros ou enterros, o cidadão ficou seminu ( a bunda talvez tivesse muitas celulites para exibição no horário nobre) diante do descaramento pelo abuso da perversidade de quem pode exercer certas  leis, e foi linchado por isso.
Fernando José, ator presente em várias produções de cinema e televisão nos anos 70/80, reside no edifício Master. Carreira interrompida por um contra-regra  que preparara de forma errada um revólver para uma cena violenta de um filme policial. Uma trama baseada no assassinato de Claudia Lessin Rodrigues, ocorrido em 1977 na casa de milionário de origem suiça,  e que a faca nos dentes e seu regime censurou também. Arrebentou-lhe os tímpanos, o tal revólver cenográfico do mal. Quanto a Claudia- irmã de uma ex-garota de Ipanema e atriz- morreu estrangulada por dois vagabundos num rico apartamento da zona sul da cidade. O julgamento dos canalhas é uma das maiores vergonhas dos tribunais do país. E dizem que o Paraguai tem - ou pelo menos teve algum dia- ministro da marinha, sem oceano por perto, a cuidar.
Quando a visita ao condomínio termina, o condomínio desnudado por Eduardo Coutinho, nossas vidas estão um pouco mais miseráveis, e cheias de brilho. Cada um dos invadidos se tornara protagonista de uma vida que pode ser qualquer uma. Aquele edifício podia ser o mundo todo. 
Dentro da sala escura, um labirinto de sonhos, quem é que não tem medo na vida? 
Tem um bicho papão por aqui, papai. Atrás do armário, suspeito. Talvez em qualquer canto onde uma câmera e uma ideia possam documentar.

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