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domingo, 1 de abril de 2012

Millorianas....de Fernandes

Não consigo reproduzir sensações ou experiências que foram atravessadas na vida,a não ser num relato pós- evento e editado por certo.
Uma das feridas narcísicas que a invenção do Dr.Freud nos trouxe - essa tal de Psicanálise- foi a de que estamos condenados ao atraso.Sua ideia de um só depois ,ou seja, de que a significação a ser dada ,para o que quer que haja, emergirá sempre depois, evidencia-nos uma impotência irreversível.E esse depois possui as suas gradações, ressaltando a importância do 'a cada caso' e do 'a cada situação'.
Existem criaturas mais reativas que outras.Ontem mesmo, peguei-me em delito de ansiedade: uma colega falava e uma suposta ideia - pretensão juvenil de aquilo fosse alguma ideia- caiu-me,emergiu,brotou na face.Percebi o fato ,após o brotar na face.Já tinha florescido e por pouco não atrapalhei a prezada colega,visto que desejava falar-lhe algo que julgava ser fundamental para mim.Quase a atropelei com algumas tolices astutas que calara antes.Aguardei.Aguardei um pouco mais.Aquilo foi eterno.Contudo,era necessário esperar.Faz parte de um exercício mínimo de quem tenta estabelecer uma conversa mínima.E pode ser ainda mais grave se o seu interlocutor/a em questão estiver lhe dizendo algo que lhe seja desagradável ou que contrarie seu ponto de vista,sua visão de mundo,suas convicções.Na mesma hora,pinta o cãozinho que nos habita.O cãozinho racista,fundamentalista,preconceituoso que escondemos das visitas pouco íntimas.
É aí que aparece a imagem de um grande brasileiro,morto há poucos dias: Millôr Fernandes.
Enquanto digito seu nome,um corretor ortográfico indica estranheza com relação ao Millôr .Nada mais normal já que corretores ortográficos binários não estão preparados para grandezas maiores,para essas figuras que se portam além da mera combinatória entre oposições,por conseguinte,da chamada criatividade.
São personagens que criam ( criação é algo bem maior que a mistura de elementos disponíveis e a sua possível combinatória) e inauguram novas formações,novos discursos.
Millôr nasceu Milton. O moço do cartório que fez o registro errou, ou a caligrafia estava confusa ,e ele lhe sapecou dois L ao invés de um único T.
Não houve maior alarde dentre os seus familiares por causa do equívoco.Aceitaram de prontidão o novo e raro nome.Pareciam antever preciosidades.
Nascera no Méier ,tradicional bairro da Zona Norte carioca. Ainda bebê,perdera o pai..Aos 10 anos ,despede-se da mãe.Fica órfão e a pobreza financeira lhe atinge.Passa a viver num quartinho ,nos fundos da casa de uma tia.Tia que lhe fora cara por toda a vida.Tem um irmão -não sei se teve outros - que se faz jornalista importante.Um dos principais do país.
Inicia trabalho ainda bem jovem e pagava para estudar com as economias que fazia.Retornava do trabalho e às vezes deparava-se com uma sardinha que o aguardava no forno de um fogão ,da casa da tia.Ela não se esquecia dele. E ele nunca se esqueceu desse fato. Foi muito pobre,quase miserável.Passara fome,antes da sardinha.
Estudou jornalismo e foi um dos mentores do Pasquim.Periódico fundamental para inteligência tupi-guarani ,sobretudo em tempos de gorilas com arcos e tanques e bolas e choques a tirar toda a nossa energia.Justo a energia daqueles cujo talento fazem esse planetinha azul girar e rodar.
Foi tradutor,escritor,ensaísta,enfim,um cara pensante e sem temores idiotas,apesar de reconhecer a idiotice nossa diária. Millôr foi talvez o maior filósofo brasileiro.Um dos seus maiores amigos, o cartunista Ziraldo,afirma isso com convicção.
Mudou -se para nossa pátria comum,Ipanema, e se fez notório.Inventou também aquele jogo ,maravilhoso para quem o pratica e terrível para quem passivamente o assiste e leva uma bola perdida no rosto, o frescobol.
Enquanto tradutor,é considerado,em versão brasileira, o maior de todos em termos de To be or not To be.Aquele toque a menos de Shakespeare,pois a língua dele não alcança a dimensão do Haver ou não Haver,essa sim a nossa questão fundamental.O que há deseja o que não há e continua desejando esse sumiço.Sumiço de Nirvana,mas continuando a desejá-lo.....o tal sumiço.
Li a sua versão para Hamlet e fui insone para o colégio.Passei a noite ,feito as obsessões paranóicas do seu protagonista, a deliciar páginas Millorianas.
Cutucava Freud e a psicanálise,não para destituí-la ,mas para provocá-la.Era um polemista genial.
Numa dessas, acredito que a protagonista-entrevistadora não entendeu,ele afirma a sua decepção com a historia da humanidade.'Um vexame.Veja esse século XX ,por exemplo!'
A apresentadora ,nascida no século citado e supondo-se uma maravilha televisiva,não gostou.Sua vaidade fora atingida em cheio.Não conseguiu mais entrevistá-lo.Ele era muito grande para o caminhãozinho daquela jovem senhora.
Millôr -Milton era pouco ou nada reativo.Botava o rosto para apanhar e bater.Incluía-se na porcentagem de idiotices que enxergava à frente.E era sábio.Tinha humor refinado.Era um cara corajoso e sofisticado na sua simplicidade.
Fui vizinho de Millôr,vizinho de bairro.Encontrei-o algumas vezes.Ele passeava.
Sua mente era ágil.Creio que Millôr tinha um tempo para significações,para tomar ciência das coisas bem mais rapidinho que a maioria de nós.Sacanagens de um demiurgo elitista?
'OH,Senhor!Dá-me um pouco de Millorices cognitivas!Sejas gentil para com os incautos!'
Ele foi um desses que se tornam contemporâneos do seu tempo.Portanto,eles são capazes de enxergar e escutar o óbvio.
Na verdade,invejava-o.Queria ser um pouco Millôr-Milton.

2 comentários:

andrea dutra disse...

vc é um dos maiores milorianos que conheço, eu gostar dele tem muito a sua influência. txs ;)

carluchodantas disse...

Obrigado Mais querida.Isso me deixa muito contente.Beijão,o.2