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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O Nono andar.

Faz onze anos que fora iniciado um esboço de texto. Ele se chamaria 'O Nono Andar'.
O nono andar se torna um personagem então. Tem vida própria. Protagonizando um semi-horror que vem a ser aquela sala enorme com dois boxes um pouco mais privativos onde algumas pessoas realizavam tratamento quimioterápico. Câncer. Um ataque histérico de certas células que passam a se reproduzir descontroladamente ocasionando tumores que podem se espalhar pelo corpo todo ou não. Os que não sofrem a famigerada metástase podem ser operados ou tratados radio ( queimação) ou quimioterapicamente ( Uma bomba química). Essa última pode provocar efeitos colaterais terríveis dependendo do tipo, região ou intensidade do câncer. As causas dessa desgraça, que já foi tratada como ' aquela doença', nunca foram bem esclarecidas. Existem fatores que facilitam, desencadeiam, com maior facilidade, mas que no fundo, até mesmo das pesquisas mais avançadas, a incógnita permanece. Um importante pesquisador estadunidense e oncologista publicou um livro, faz uns dois anos, em que declara que em última instância não se sabe ao certo o que desencadeia esse descontrole celular.
Tabaco, álcool, outras drogas ditas pesadas, certos elementos químicos ( mercúrio que vem a ser um metal líquido, por exemplo), raios ultra-violetas em certos horários e períodos do ano,  formam um clichê mundial no caso desses  agentes considerados cancerígenos. Radiação nuclear, radiação gama sobretudo, costuma ser fatal para o nosso organismo em caso de extrema exposição, etc. Lembremos daquela exposição a um elemento químico denominado Cloreto de Césio 137, em Goiânia, nos anos 80, ao qual foram submetidos moradores da cidade que manusearam ou tiveram contato com alguém que o tenha feito, provocando a morte, oficial, de 4 pessoas e que contaminou centenas. A cápsula estava acondicionada com segurança num invólucro de chumbo e era utilizado para bombear, através de um maquinário específico e seguro, radiações específicas que visam destruir as células doentes, cancerígenas, sem destruir as células normais ou saudáveis. O mais curioso é que aqui a ideia de saúde corresponde à normalidade....Isso daria uma tese sem fim. O que se sabe é que algum bisbilhoteiro resolveu manipular aquilo que fora descartado num lixão, num ferro velho, e ao abrir a cápsula se deparou com um brilho lindo, um espetáculo aos olhos. Logo, vamos tentar revender isso. Pode-se ganhar uma grana? Claro que sim. E quanto custará? Nesse caso, pagou -se com a vida ou com lesões graves e permanentes. Por exemplo, houve pessoas que sofreram amputações de seus membros. Durante muito tempo, esse caso permaneceu escondido.
O país saltava fora de uma ditadura militar que perdurara por vinte e um anos pulando para dentro de  uma ditadura civil ( apelidada de Nova República) e cujos preceptores eram velhos senhores de outrora. E no que tudo isso nos ajuda na condução da história que tentará ser pega por algum caminho, nos parágrafos que nascerão abaixo? Retirando essa explanação, muito pouco. Comecemos de novo sem retornar ao preâmbulo acima.
As sessões às quais a senhora minha mãe submetia-se a cada quinze dias ocupavam um pequeno boxe naquele nono andar que era destinado às sessões de quimioterapia. Confesso-lhes que não olhava para os pacientes outros. Lembro-me entretanto daquele rapaz que surgia vez ou outra na vã tentativa de entreter os pacientes. Motivo? Era sobrevivente de um câncer muito agressivo. Tinha realizado o tratamento naquela sala, no nono andar. Onde ele se encontra agora? Não se faz a menor ideia.
Quinzenalmente, íamos para guerra. Sim, uma batalha. As sessões duravam até 6 horas. Aquele pinga pinga de bombas químicas e uma ilusão reconfortante a ilusionar. Ela, a paciente. fingia que se iludia. Logo, dedicava-se ao máximo. Nunca faltava e éramos muito pontuais. Na hora marcada, sentávamos na sala de espera. Além do mais, realizava todos os exames solicitados por sua santidade o médico cuidador.
Passados 5 meses, a primeira reação grave.
Vamos à cena: cinco horas se passaram após o início da quimioterapia. Quase sempre éramos os últimos a deixar aquele terrível lugar. Digo terrível visto que a minha irmã e eu já sabíamos o prognóstico. Se tudo corresse bem, teria um ano de vida.
Essa cena se mistura com a do dia anterior ou o momento da sentença fatal.
Os dois irmãos sentados diante do oncologista. Ele manuseava uma página após a outra e nos entregava. Não dizia coisa alguma e evitava nos olhar. Tive vontade de interromper esse ritual semi-macabro e indagá-lo: ' O que isso tudo aqui espalhado pela mesa significa? Já temos um parecer bastante grave que nos foi apontado pelo clínico geral dela''.
Não houve coragem. Minha irmã teve: 'Quanto tempo'?  'Se tudo correr bem, um ano no máximo'.
O Real... AH! O tal do real... Sabem o quê significa? Um tijolaço na cara. Isto é: o beijo que não houve; o gol perdido; o erro do cálculo; o brinquedo que não veio; a chuva num dia de sol; a traição; a reprovação; a rejeição. A solidão absoluta.
Saímos da sala com tudo isso no corpo. Descemos até a garagem do edifício por onde circularia por quase cinco meses. Antes de chegar à rua principal, uma espiadela naquela lanchonete vagabunda  logo mali na esquina onde um sanduíche foi comido algumas vezes. Nenhuma saudade.
Estávamos então naquele carro branco e nele 'passeamos' pela orla de Copacabana onde ficava a tal clínica. Se consigo acompanhar a mim mesmo, utilizo a expressão 'tal´' motivado por um desconforto ainda presente. Fomos e voltamos diversas vezes em direção ao Leme e retornávamos na direção Ipanema. Aquela praia estava sem graça, sem boça. O telefone tocou e a amiga de vida toda da minha irmã telefonava para lhe dar apoio. Confesso que também não curto essa expressão ' amiga de vida toda. Assim como um 'beijo no coração, o níver do fulano...Porém esse capricho é meu e todo meu. 
Bem, o telefonema funcionou. Foi um reconforto. Decidimos parar numa loja de departamentos a fim de comprar um daqueles aparelhos que ajudam a melhorar a respiração. Nebulizador. Sim, é esse o nome. Simplesmente, pensei: Ela sempre foi muito alérgica. Como vai suportar a esse massacre químico no seu corpo? E os enjoos? Tão propagados e perversos. Conseguimos o aparelho e um medicamento- através da indicação de uma prezada e competente amiga, visto que para o 'Sir. Oncologista não faria diferença- que lhe trouxe um conforto extraordinário. Não sentiu nenhum enjoo ou náusea. E aquele filho da puta dizendo que ' Tanto faz...' Faça o mesmo com a sua filha, seu escroto! É isso. Tem que ser com a filha! Até porque é meio caretão, cara de CDF, pau pequeno. Risos de histeria. Preconceito?
 Desculpem-me. A sensação ao se descrever  essa guerra confirma o conceito freudiano da não temporalidade do inconsciente. Foi ontem. Foi agora.
Foram seis meses. Sem nenhuma esperança. Situação irreversível. Não lhe foi dito nada. 
Certo dia, ergueu um pouco o corpo da cama abruptamente e me perguntou: ' Filho. Quanto tempo?'
Nada respondi. Numa noite chuvosa, na verdade uma tromba d'água, típica do verão, o noticiário mencionava a morte do irmão de uma amiga de longa data. A causa dessa morte: um câncer de pâncreas. O mesmo órgão onde a metástase surgiu. Fatal.
Numa linda manhã de verão, nuvens de férias, fim de Janeiro, a guerra foi vencida. Pela doença. 
O nono é andar é aquele pesadelo que nunca te esquece.