Marcadores

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Onze minutos e um funeral.

Onze minutos. Petrificaram-se em horas, talvez em alguns segundos, e a eternidade marcando um tempo único para o restinho de esperança que adentra o gramado para evitar a tragédia que se anunciava.
 Foi assim que tudo aconteceu e os comentários que se perpetuaram  na coxia dos coliseus da pátria amada ( mãe gentil?) é que naquela tarde de Junho de 1950, o país presenciou o seu maior velório desde então. Quatro anos mais tarde, em Agosto de 1954, um outro velório marcaria nossa história. Um soberano getulista SE MATAVA-SE. Isso mesmo, assim escrito. Um vitalismo de redundâncias. Morte morrida pois matada pelas mãos do próprio soberano com aparência cândida de um vovô que nos brinda com guloseimas. As balas, que não eram tampouco adocicadas ou de borracha, e o avô em jogo não era de Noel, estouraram-lhe o peito varonil. O pijama real, aquele que encobria a pele e suas rugas da velhice, antes do atentado contra ele mesmo, exibe-se sob o leito derradeiro num quarto abandonado do Palácio Guanabara, sede do governo federal naquele período, Rua do Catete. Traz o sangue perdido pelo coração esgarçado de um dos egrégios farroupilhos eleito caudilho.
O velório de 1950, contudo, era um velório campal já que o número de moribundos confundia os recenseadores daquele tempo. Milhares, talvez milhões. E a tal cerimônia funesta ocorrera num imenso tapete verde ornamentado para uma guerra. No início, uma guerra de confetes e serpentinas. Promessas, políticos e mentiras. Esse era o cenário, a cenografia teatral montada num tapete verde estendido para batalhas entre meninos-homens que corriam atrás daquela formação esférica, à época alaranjada, e com seus gomos expostos ao destrato, ao desprezo do chute alheio. E eles a chutavam sem piedade alguma. Pode-se ouvir, ainda hoje, o grito da bola bandida ao passar de um pé para outro e assim adiante. Devassa! Um repórter deveras bisbilhoteiro, tanto mais do que os outros que ali testemunhavam  o epitáfio daquele mundo todo-  mundo esse que naquela tarde de inverno no continente sul-americano se resumia por aqui-,  ouviu esse tipo de impropério dirigido, ou melhor, chutado na direção da bola, da gorduchinha, para os íntimos. 'La pelota' para os gringos platinos. Os adversários eram platinos uruguaios. Seriam inimigos? "Prefiro que não sejam".
Alguma cidadã torcendo o lenço perfumado de lágrimas e suor - pode fazer calor no inverno carioca, caracterizando assim a sua bipolaridade climática-  murmurou a negativa. Cento e noventa e nove mil outros cúmplices, e que também presenciavam o combate, auscultaram o sussurro da companheira de torcida. Parece que não se conformava com essas definições belicosas para espetáculos esportivos. Esportivos? Pode-se ao menos indagar se não acontecia ali, no tapete esverdeado, uma guerra entre dois povos vizinhos. Irmanados? É bem possível. Daí o perigo.
Existia de fato uma batalha com resultantes conhecidas por  vencidos e derrotados. Se bem que no esporte das patadas atômicas, gols de letra, dribles da vaca, canetas e outras artimanhas, o empate há.  Os estadunidenses, por exemplo, não aceitam essa tal resultante que empata coisas, jogos, guerras. Alguns precisam receber o rótulo de "losers"  para poder prosseguir, poder aprender a cair. Aquele tal soberano, aquele lá do tiro nos peitos, não suportou. Os esportes na terra do estadunidense Pluto sempre resultam em 'winners' and 'losers'. Diz a lenda do velho oeste lá deles que num certo dia, Pluto, cachorrão simpático, teria empatado com o Scooby doo, outro bichão agradável, divertido,  num concurso de beleza canina e o bafafá entre ambos se estabeleceu. A binariedade que envolve os ultra liberais republicanos e os igualitaristas democratas terminou em ameaças bélicas sérias.  Pluto requisitava a antiguidade enquanto posto. Scooby por sua vez o chamava de ultrapassado, tradicionalista de racismos, oligárquico ser, meio fantasmagórico e proveniente de  um século muito, muito antigo: o século XX.  O final dessa história terá início com alguma canção melodramática. Daquelas típicas melodias em que as produções do cinema estadunidense se apoiam quando o roteiro do filme não funciona bem. E eles proclamarão a vitória da Demo-cracia e vaticinam que Deus abençoará a América ao dizer: 'In gold we trust'.
No réquiem de 1950, Mozart ou  Schubert estavam a postos. Cada um defendendo a sua estilística singular. Nas arquibancadas do então coliseu- recém destruído pelos incautos- duas centenas de milhares de compatriotas se espremiam a fim de celebrar a conquista derradeira. O triunfo dos atletas boleiros mais se assemelhava- na mente daquela gente toda- a uma conquista napoleônica.
A segunda grande guerra terminara fazia 5 anos. Herói e gênio geralmente estão mortos há mais tempo na nossa postura colonizada. E aquela guerra era muito recente e havia devastado o velho continente. Portanto, já que Roosevelt ( depois Truman) , Churchill  e o "democrata" Stalin disputavam o posto de herói principal na guerra contra os lunáticos nazistas, a torcida preferiu escolher o inverno russo como soberano maior, para finalizar uma era cujo protagonista fora aquele psicótico rapaz das alemanhas e de bigodinho esquisito. Parece que dessa vez acertaram na escolha. Quem disse que não sabemos votar? Aquela vitória redimiria o país e o seu sintoma em não se assumir feito de vira-lata. Não é o complexo em ser ou não, mas de não se assumir. É negar o óbvio. Ululantes razões, diria um atento e também torcedor, Nelson Rodrigues. Um outro torcedor, cujo país de origem tem na bandeira nacional as mesmas cores do tricolor carioca, time do escritor, diverte-se com a algazarra na nova terra.  
Vindo da guerra, só que da primeira, esse italiano que, nascido na região sul do seu país,  migrara para o país canarinho e tendo vencido a vida, leva com o peito aberto a única filha para o jogo-batalha final. Eram tempos em que pais, mães ( essas formações imperiais)  preparavam os rebentos para guerra, ou seja, para vida. Será que escutaram os ensinamentos freudianos? Atravessaram diversas e severas batalhas. Tinham a marca decifrada na carne. Tatuagens belicosas. Mimar filho era como praticar bullying. Não são bonequinhos para deleite materno- ilusão de completude- e outras  doenças do tipo. 
Já do outro lado imaginário desse mesmo coliseu estava um jovem proveniente do nordeste brasileiro e recém chegado de São Paulo, estado soberano, e que assumirá o comando financeiro do país no fim da década de 50. Juntamente com um amigo carioca, de uma família respeitada nos cochichos sociais, e que marcará a sua vida. Eles estão na maior galhofa e fofocam sobre as pernas das moças do andar de baixo da arquibancada de cimento fresco. Um deles, o nordestino aventuroso, refestelava-se com os olhos. De repente, um grito surgiu: " Olha lá o Zagallo"! Todo fardado de soldado, o então militar. Ainda era Mario Jorge Lobo e Zagalo com um L só. Estava de costas, o velho Lobo, para o campo de jogo, fazendo do olhar do torcedor aliado (estivesse ele na arquibancada, na geral popular ou na pretensiosa tribuna de honra) seu espelhamento particular.
Aos 34 minutos do segundo tempo daquele 'Waterllo" brasileiro, a algazarra se transformou em drama. A seleção brasileira de bola no chão deixava escapar a taça de campeão do mundo da modalidade. A festa já tinha sido combinada, o resultado antecipado, os sonhos a confirmar. Houve 3 momentos desperdiçados. O início sem gols, após a vantagem adquirida no placar, uma nova igualdade entre as tropas futebolísticas e por fim aquele lance de mestre por parte de um ponteiro certeiro uruguaio, despretensiosamente negligenciado, e o silêncio com todas as oitavas a ressoar perplexidades. A segunda guerra mundial terminara para os brasileiros naquele petardo, gritado de gol nas diversas línguas, de Ghiggia, o ponteiro direito. O empate, que favoreceria a nossa equipe, foi esnobado. Teria a tal equipe se deixado levar pelos ventos estadunidenses? Ao invés do vira-lata não assumido, um cachorrão da Disney resolvera nos apossar? Empate nem pensar! Aqui no nosso território e ainda por cima diante de um imigrante com sua filha adolescente? E o jovem vindo do Nordeste e suas aspirações? E aquele soldado bem comportado que dava pinta que um certo dia talvez pudesse atirar de volta algum petardo certeiro ao adversário destemido? Uma espécie de retribuição de gentilezas?
Onze minutos e a terra brasileira foi para o ataque, para a defesa, embolou no meio, reclamou da falta que não houve, do lance que nem viu. A guerra estava por um fio, a rendição a se decretar. Uma terra que nasceu na porrada, origem uruguaia, não se abate com ilusões, chiliques, elucubrações precipitadas, promessas sem rumo, arrogância desmedida. São pragmáticos. Adoram cassinos e um baseado oficial. 
Durante anos, Zizinho, um craque brazuca, achava que se comunicou por telepatias e sonhos com Obdulio Varela, craque e xerife do time uruguaio. Parece que ambos eram discípulos de um treinador lá da estranja mais distante: Kardec, seu sobrenome. Outros brazucas diziam que sonhavam que o jogo ainda não havia sequer começado. Reinventavam o tempo. Fazê-lo passar ao contrário, transformando aquilo que houve em algo que não tenha ainda havido, por favor! Impossível. Essa é a tragédia, esse é o maior dos velórios já presenciados num campo de batalha esportivo.
Por falar em tempo que, parece não fluir, não joga para frente, Ghiggia, nosso carrasco para sempre, permanece vivo. O único sobrevivente jogador que esteve na linha de frente naquele amaldiçoado jogo. São quase 87 anos vividos naquela terra e cujo tempo parece ter sempre os mesmos 11 minutos finais semelhantes aos minutos transcorridos de 1950. Ele, um inveterado patriota, bebe um reluzente Tannat, sorri,  e ainda joga com essas histórias. E lá vai o ponteiro certeiro direito da celeste...