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domingo, 30 de outubro de 2011

Formas de gozo.

Como de costume ,o elevador desceu até o andar chamado de térreo.Porta aberta,degraus à frente a percorrer.Há uma escada de mármore e depois uma porta.Dobra-se à esquerda e chega-se a uma outra porta.Essa ,chamada de principal,olha para fora,olha para rua em frente.
Já é noite.Tudo passara rápido.É como se não houvesse tido dia.Virou-se a folhinha e pronto.Não há mais volta.Aquele data não se repetirá jamais.
Já é noite e há der se ter pressa,pois o filme vai começar.
O trajeto até o cinema tem a duração perto-longe.Há de se chegar a tempo.
Sem o hábito de dividir tesões cinematográficos,a companhia dos amigos é novidade.Se bem que cinema é para se fazer silêncio.Essa é a participação especial do tal espectador:entregar-se.
Filme tenso.Situações além do drama e que nos atingem.Fim de filme.Conversas e bebidas e comidas e promessas.E como se promete!Prometer é sustentar a ilusão de que o futuro é certo e garante coisas.
O falecido filósofo argelino-francês Louis Althusser já nos ensinara exemplarmente- ainda que tenha exagerado na massagem corporal de sua esposa - que o futuro leva muito tempo.
Diríamos então que ele ,o tal futuro,é quase mítico.
Futuros passados,retorna-se à casa de sempre.A mesma porta que se abre para o resto do mundo,fecha-se em seguida.Do lado de dentro, o mesmo sorriso desgrenhado daquele que conhecemos desde a vida toda.
O sorriso está pálido ,pois sente dor.O braço o incomoda.Diz que é uma tal de bursite e pergunta se ela poderia ser lá do Ceará?Não há resposta para isso.Deve-se consultar os 'sites' doutos que por aí passeiam na grande rede e descobrir a origem,a etiologia da tal bursite,etcterrá.
Um dia se passou e novamente já é noite. Janela aberta,noite quente.Aproxima-se o verão que,pelos lados da Guanabara, tem rosto de inferno.Vermelho,ardido feito coisa ruim.
Ouvem-se gemidos.Vem de cima.Há pouco se descobriu que algum tarado filmava pornografias com adolescentes. Alguma vizinha ,invejosa das meninas,colocou a boca pra fora daquela porta, que vê tudo para o lado de fora e chamou alguma autoridade em adolescentes,que não fosse aquele tarado lá,do sétimo andar,apartamento dos fundos...
O tal cara quase foi preso.Fugiu poucos minutos antes da chegada das tais autoridades.Foi preso depois no estrangeiro.Tarado importante.Filho de deputado...
Os gemidos deixaram saudades.Não se ouvia mais até que...Naquela noite tórrida,reapareceram intensamente.Invadiram o quarto e povoaram as fantasias da noite.
Dia seguinte,café da manhã.Coisa mais chata quando não se está em hotel estrelado.Aquele gosto de vida toda.Faz lembrar as festinhas familiares.Aqueles rituais obsessivos sem pimenta ou sal.Só veneno fruta e sucos,á direita.Alguma coisa da cozinha,dobre à esquerda.
O mesmo elevador,a mesma escada de mármore,o portão futriqueiro para rua à frente. Três porteiros,colegas daquele da bursite sem procedência definida, perplexos.
Todos se olharam e disseram :'Antônio morreu. Teve um infarto fulminante ,ontem de madrugada,aqui no prédio.Pediu socorro,gemeu forte ,alto,quase um orgasmo.Nada."
Antônio,sim,era cearense.Veio jovem para os cantos do Sudeste.Melhorar de vida era a meta.Conseguiu.Conhecíamos desde os primeiros gemidos de fralda.
Botafoguense e brasileiro.Adorava apreciar o vai e vem da rua que, a porta transparente que ficava sempre de butuca, lhe oferecia.Gozava de olhar,mas também gozava de dor.Tinha 70 anos.
Eram esses alguns dos gemidos que se escutavam naquela madrugada de janelas abertas para um não futuro.Ao menos para o velho e bom Antônio que morreu sem saber se 'a tal bursite' era conterrânea ou não.

domingo, 16 de outubro de 2011

Não jogue fora.Não há fora.

Não jogue fora ,pois não há fora.
Esse poderia ser um slogan da Psicanálise postulada por Magno Machado Dias,mas é a propaganda que uma grande empresa petrolífera costuma adotar quando se instala em um novo país.Atrás do tal slogan circula uma tentativa de se passar a imagem ,no caso da empresa,de que existe preocupação com o chamado meio ambiente. A companhia em questão já foi autuada diversas vezes por crimes ambientais.
Contudo,o que está interessando é o fato de que realmente não adianta jogar fora,pois o fora não existe.
O que seria jogar fora então?
O jogar fora pra valer,e aí pode-se incluir qualquer coisa que haja,seria o que há de mais trágico,ou seja,algo que não tem reversão possível.Por exemplo: quando escrevo esse texto não posso negar que ele não foi escrito,que não existiu.Posso apagá-lo,mas o que se fez foi feito.Uma vez no jogo,não há como escapar dele.Posso aderir mais ou menos,entrar -tal como dizemos por aí- de cabeça,denegá-lo,pois foi afirmado antes ,mas escapar do simples fato de que se há,não tem jeito.E isso é uma condenação dos diabos. A frase tão propagada por todos nós que, nos supomos vítimas de tudo o que nos atinge ,o famigerado ' Eu não pedi para nascer', é exemplar também. Não pediu? Tá bom. Mas pede para sobreviver.Senão não teria nem dito a bobagem de antes.
O homem macaco é assim.Ele está quase sempre em atraso.Todas as significações vem depois do já ocorrido,logo,tal como Magno ensina,todo processo curativo é precário.É o sentido da expressão 'Só Depois',ação tardia freudiana.Na verdade, não é uma mera expressão ,e sim um conceito fundamental em sua obra ( Nachtragichkeit em alemão).
Diferentemente daqueles que diante das angústias frequentes ( Alô? Tem gente aí?) se entopem de coisas ,o movimento botar pra fora é análogo ao que ocorre em processo de análise,de partição,isto é,caracteriza-se por ser um movimento de esvaziamento.É muito frequente as pessoas que se deixam afetar pelas perdas ,temores,angústias e outros sofrimentos perderem peso corporal.Existe uma canção do falecido e saudoso Gonzaguinha,morto num acidente de trânsito,há vinte anos,em que ele declara que o copo está cheio e não dá mais pra engolir.Senão, coração vai explodir. E o pior é que explode mesmo.
Passei parte da minha vida com o estômago virado e adquirindo novas técnicas de botar pra fora,o chamado vômito.Coisa bem histérica.
Certa tarde,há uns vinte anos também ,daí evocar a tragédia com Gonzaguinha,numa conversa com o meu analista ,disse-lhe que notava uma considerável mudança -para melhor no caso- desse sintoma, no mínimo, escatológico.Ele então me disse: " Mas é óbvio caríssimo.Você agora vomita nos meus ouvidos".Perfeito. Analista também foi feito pra isso. Logo, há de se pagar direito ,visto que lavagens auditivas ocasionam despesas.Faxina,detergente,cotonete....
Fui aos poucos me transformando num minimalista.A obra de Mondrian passa a me interessar.A obra de um Cortázar ou de um Rubem Fonseca e outros mestres dos textos mais curtos e precisos e desconcertantes invadem a minha vida.Magno foi o principal.
A limpeza conceitual que fez na teoria psicanalítica é brilhante.Obra de gênio.Infelizmente,já que somos brasileiros que adoram colonização estrangeira ,esse passo dado é alvo de muitas tentativas de linchamento.Só que o mundo está indo de fato aonde a teoria dele indica.Contemporâneo de si mesmo é obra para poucos.
Quando iniciei a minha análise,há vinte e alguns anos 'por supuesto', já tinha passado por uma terapia e até pelo consultório de um outro analista.Venho,portanto,de longe.Estou enfiado com isso desde 1985.A diferença é que no meu encontro em análise magniniana -que é um desencontro,uma desilusão necessárias- as mudanças tem como norte uma ação modificada.Um olhar diferente.Uma maneira de se portar que foi se formatando para um depois se formatar diferente e de novo.É um depois,pois continuo em atraso.E leva tempo e muitas vezes fracasso e repito o erro.Porém,reconheço-o e busco não repeti-lo.Reconheço minha vaidade,meus ressentimentos,invejas,estupidezes e também alguns acertos. Por exemplo? Arrependo-me de muitas coisas que fiz.Por quê ?Já que a maior parte delas foram realizadas por minha vontade?Excluindo a infância humilhante - criança é ser inferior e quase sempre humilhada quanto aos seus tesões e interesses,até porque se deixar muito solto sabemos a loucura que poderá advir- ,tive uma vidinha deveras convencional e bem negociada para um garoto da média-alta burguesia carioca zona sul (média-alta dependendo da cotação dos derivativos da bolsa de valores).
Fui exilado duas vezes.A primeira num colégio da altíssima burguesia patética de Ipanema,chamado Chapeuzinho Vermelho.Uma espécie de hospício bem comportado que,felizmente,não existe mais.A única formação que me traz recordações muito boas é a do meu antigo ,e primeiro,professor de educação física que reencontrei esse ano num evento social.Tornou-se um técnico de voleyball muito conhecido e campeão internacional.Era a melhor figura daquele sanatório infantil.Fora a minha professora de música - de lá mesmo da casa do lobo mau- que tocava várias sonatas de Chopin para os pequenos surdinhos de então.Eu reconhecia naquela música uma canção de ninar.
Minha mãe era pianista competente.Tinha estudado com Jacques Klein,talvez o maior pianista clássico brasileiro, e que morreu precocemente aos 52 anos de idade.Ela adorava os românticos.Chopin,Bruckner,Liszt... e que também morreram jovens,o primeiro e o último.Para nós ao menos,pois à época não se vivia tanto tempo .
O meu segundo exílio foi Brasília.Despachado para lá aos 10 anos de idade.Lembro-me do susto quer tive ao ver os prédios deitados,preguiçosos.Indaguei ao meu pai o porquê daquilo e ele me disse:" Foi assim pensado por Lucio Costa e por Niemeyer comuna e pronto"!
Talvez tenha sido a primeira experiência de não deslocamento possível que reconheço na minha vida.Já que fora planejada assim ,e por duas figuras tão eminentes,não se pode - não é nem que não se deva ,portanto é mais grave- sequer questionar. Era o típico servidor público, leal às delirações das repartições oficiais,o meu pai.,
Vivi por sete anos e meio na secura do planalto central -nessa época muito menos seco,mais frio no inverno e mais aconchegante nos vínculos pessoais-, e a vi desabrochar.Fomos adolescentes juntos.Agora,tornou-se adulta neurótica grave caminhando para decrepitude .Alguém precisa arrumar um geriatra e um neurologista para aquela cidade,antes que algum Roriz o faça.Imitam as grandes metrópoles brasileiras no que elas têm de pior.
Quando vibrei com a morte de minha escola primeira ,talvez estivesse mentindo,pois ainda falo aqui sobre ela.Creio que desejei pular aquele muro branco alto e visitar os meus amigos de infãncia.Quem sabe poderíamos formar um novo partido?E aquela mulher de 8 anos que não correspondeu aos meus galanteios com sorvete do Morais,que ficava quase em frente da minha boca-casa, em punho?
A casa ,avisaram-me ,já não era mais a mesma, fazia anos. Abandonada pelo tempo e pela despedida sem Adeus.Entrar lá é se entristecer demais.Tem até mendigo estudando,quero dizer,morando ali.
O que restou está na minha retina-memória.E eu ,por certo,ainda hei de sonhar que posso jogar pra fora o que é caminho, tão somente, de uma solidão da boca pra dentro.