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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Conversando com estátuas. Papo futuro.

No seu livro mais conhecido, A Rebelião das Massas, escrito na segunda metade dos anos 40, século XX, o espanhol José Ortega y Gasset, dentre outras importantes considerações, cunha - palavra cujo nome próprio em território brasileiro ressoa turbulências- uma pérola de letrinhas  em que afirma: 'Conversando com estátuas'.
Conversar com certas estátuas, no caso do intelectual Gasset, era hábito seu quando visitava outros países e por lá não tinha vínculo com outras estátuas de carne e osso. Essa formação primária tão frágil e quase patética. O nosso corpo. Moldado de cabeça, afetos, e cujo tronco e os outros membros são decantações resultantes a sustentar o resto da carcaça.
Não se sabe se por deliberação antisocial ou por distanciamento entre línguas estrangeiras-  apesar que informes dão conta de que o escritor era poliglota- , ele quase não mantinha contato com locais. Portanto, estabelecia falações, monólogos sem réplicas com essas celébres esculturas.
Quando visitava Portugal, por exemplo, cumprimentava  de Pombal a Pessoa. Na França, Itália ou na imperial Áustria era um orgia de dizeres proferidos aos bonecos, muitos deles, feitos de bronze. Diante da sua erudição comentava-se que bonecos mais exaltados teriam tentado alguma réplica. Até com contundência. Porém, incapacitados pelo peso da fantasia e o tempo a corroer, desistiam. Restava o silêncio e uma biografia bastante consistente a se argumentar.
Diante disso, tenta-se fazer o mesmo , por aqui, antiga Guanabara, nas localidades vizinhas e seus arredores. A mais recente peça bronzeada a se exibir está postada próxima ao oceano e suas  arrebentações. Puseram-lhe uma luz particular cuidando assim da sua integridade física de estátua. Ganhou o nome de Tom Jobim. Também já houve relatos de que o teriam confundido com um outro alguém.  Ali por perto, talvez um quilômetro e pouco de distância, caminhando-se para o Centro, Carlos Drummond já virou Santos Dumont - o maior pássaro brasileiro- e Dorival Caymmi se tornou  o Tio Barnabé das fantasias de Monteiro Lobato e o seu planeta feito de sítio. Pintado de amarelo. Por um bendito pica-pau. Nada que não possa ser esclarecido com o tempo. Resta saber qual? 
O aqui e o agora dependem sempre de um mínimo de interlocução para que os personagens em transa conversem. Os que estão fora dessa transação, obviamente, existem também. Não se pode dizer que não estando aqui, não existem lá fora (entenda-se que o fora nada tem a ver com posições transcendentes; outro mundo). Todavia, não estão nessa transa de agora. Talvez por isso a necessidade dessa consideração. Dessa fala - ainda que equivocada- sobre o fato abordado. Alguém será interlocutor para que se possa, inclusive, chamar-se de alguém. Esse narcisimo de alteridades que nos compõem. Além do mais, ninguém fala sozinho. Nem mesmo com estátuas.
Ao se reportar às formas de concreto, José não tinha só uma pedra ou um pedaço de bronze em seu caminho. Tinha uma constelação inteira feita de saberes a lhe invectivar, para o resto da vida. José, além do brilho intelectual, era também muito destemido.
O que foi demasiadamente desagradável, no iniciar desse périplo, é que muitas dessas obras estavam degradas e tiveram suas partes íntimas violadas. Arrancam-lhes os braços, as pernas, o nariz, violam o animal que fora aliado na conquista, naquela batalha e assim adiante. A alma, enfim, se acaso houvesse de fato: início e fim. Duas ilusões da nossa existência. Os óculos do escritor..... Pois é: como se atrevem a roubar os óculos do escritor que não poderá de outra maneira escrever de punho próprio as suas histórias? Nossas histórias. Ainda que se confunda o Pelé com o Edson, não deveríamos pintar com boçalidades borradas a história de quem construiu histórias, tornando-se monumento. No Brasil, de agora e outrora, o que é de domínio público está para ser violado, apropriado ilegalmente. Tornado instrumento público das minhas perversidades mais recônditas. E o malfazejo responderá ao ser indagado/a  sobre seus atos: ´Porque sim. Porque assim o quis.'
Ortega y Gasset discorre sobre uma época pós-segunda grande guerra. Guerra essa que para muitos comentadores foi uma extensão da primeira e que ainda não acabou. E não haverá como ter fim. Os inúmeros mortos e feridos compondo uma mescla de ressentimento, mágoa, ódio - para que tanto amor?- entre os sobreviventes e herdeiros dessa incivilidade. O pensante espanhol ainda teve que se haver com aquela guerra civil sanguinária entre toureiros e toureiros e que Picasso a pincelou de Guernica. Ele morre, nosso José, em 1955, e escapou da ditadura do Generalíssimo Franco ( torcedor do Real Madri). O desgraçado do ditador fascínora ( redundância)  só morrerá nos anos 70.
Ele também faz críticas duras a certos aspectos democráticos e aponta a falação sem propósito e a degradação da formação do homem como algo bastante preocupante. Imagine se ele estivesse por aqui e agora, nessa contemporaneidade que flerta com ideais medievais. E do pior período da idade média. Pois ela durou uns 4 séculos mais ou menos.
O mundo cresceu muito. Tem gente demais pra todo lado. E a formação humana se deteriora. Quando olho para alguns dos meus tão  prezados hábitos, assusto-me. Acho tão medíocre que um cachorro se aproxima e faz saudação. Parece reconhecer um par. Tenta-se estabelecer uma conversa com semelhantes e o susto e o desânimo comparecem nessa resultante de solidão. O momento é pleno de reatividades. O quanto de meu corpo tomado de sintomas mal editados se expressam. Temos opiniões sobre quase tudo sem ter havido a preocupação primeira de se estudar primeiro. E o politicamente correto? Insuportável no falso modernismo movido a malcriações, falta de educação e que confunde rebeldia profícua , feito a de Ortega y Gasset e seus amigos agora estátuas com delirações anarquistas e outras piadas sem graça. O tal modernismo, se houvesse, teria um mundo de analistas, artistas de fato, de poetas com a vida. Eventualmente um verso.
Numa manhã, supomos que era dia e deveras cedo, afinal não se faz outra coisa, Millôr Fernandes lembrava que ateísmo de verdade era para quem gozava de boa saúde. Acrescento que, além da saúde, as finanças também devem estar tranquilas a garantir certos consumos burgueses deliciosos para o meu tesão pulsional. Não é mesmo companheiro comunista a denegar a reserva cambial do capital inconsciente? Ou não há gente? Freud já apontara que Marx era um brilhante economista , mas que não entendia nada de gente. Sonhava com mercados fechadinhos, estados gulosos, obesos mórbidos, opressores, demasiadamente reguladores, perdulários, com suas mais valias do ponto de vista do patrão- ele próprio e seu casamento com moça rica, próspera- guerras de classes ( como se já não tivéssemos tantas batalhas desde sempre, independente do sistema e forma de governos. Ora! Nunca ouvistes falar em família? ) , e outras posições que insistem na afirmação que somos todos iguais. Não somos! Somos bem diferentes e ainda bem. Temos heranças genéticas e a epigenética comparecendo o tempo todo e modificando a expressão de certos genes. A tal ideia de sobredeterminação freudiana e um velho Lamarck revisitado, depois de desmoralizado pelo triunfo Darwinista. Cada um de nós tem nome próprio. E nasceu único. Quando se casa, faz-se dois e não um.
Faz muito tempo, escrevi um texto e que fora apresentado num evento insitucional onde contrapunha o mais valia marxista e o conceito de mais gozar e sua onda de significantes lacaniano. Elogiaram aquilo. Uma saudosa colega, psicanalista e professora de arte e filosofia da PUC/RIO, telefonou-me e brindamos. Não serve mais para nada. Não faz gol nesse século que se está e o que virá. Serviu. Teria servido mais em outra época. E já foi muito. Ideias, teorias, assim como remédios, comida, certos vínculos, produções artísticas e tudo o que ficou de fora dessa pequena lista ( aquela estátua lá do início acaba de nos estirar o dedo) são datadas. Tem a tarja preta a informar: prazo de validade tal. Passou do prazo, vira veneno. Porque não surtirá efeito. Só sugestão, esperança. Logo, ilusão.
Quando se escuta pela primeira ou enésima vez essa expressão 'datada'  apavora-se. Nossa obsessividade tão cara, chacoalha forte. Garantia zero em última instância. Toda ciência só pode ser exata sob suspeição e quando encaminhada para depois, pra frente. Lembram do herói estruturalista, Descartes? O que melhor se retira daquela enciclopédia é que somos capazes e devemos sempre .... suspeitar. A dúvida nos compõem também. É o anti-narcisismo dos profetas, dos oráculos, dos que acham que tem a boa solução para o buraco fundo do mundo, das almas mais honestas e cínicas. Portanto, militante do reino das desilusões - com muito humor e pé nas nuvens- não esperemos por popularidade ou multidão a lhe cortejar. Aliás, multidão não faz singularidade. É uma manada de abestalhados chacoalhando. Nunca me viram num estádio de futebol a chacoalhar? Será que posso abrir mão disso, um dia? Certas festas e carnavais já se foram.
Não sei a quantas anda a nossa indestrutível infância, mas por aqui e agora, envelhece-se.  Por enquanto, numa boa. O mundo se estreita para qualidades maiores. Papo de estátuas?